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Textos

À conversa com Ricardo Neves-Neves e Paula Varanda

Entrevista realizada em junho de 2022, por Gabriela Lourenço /São Luiz Teatro Municipal e incluída na Folha de Sala

Como surgiu esta oportunidade de juntar Companhia Maior e Ricardo Neves-Neves?
Ricardo Neves-Neves (RNN): O encontro começou por ser entre a Companhia Maior e o Teatro São Luiz, que acabou por me convidar para encenar um espetáculo com estes atores. Comigo, trouxe a minha estrutura, o Teatro do Elétrico, e o Teatro Louletano, que é nosso parceiro em todas as estreias, e as- sim se juntaram todos os coprodutores. Paula Varanda: E é a estreia da Companhia Maior no Teatro São Luiz, é a primeira vez que aqui estamos e este Teatro tem toda uma história e arquitetura incríveis, parece-me o lugar certo para este encontro.


A Companhia Maior já trabalhou com encenadores e coreógrafos muito diferentes…

PV: Sim, tem sido esse o perfil. A Companhia Maior tem um elenco bastante estável e convida artistas para trabalharem numa criação anual. O Ricardo Neves-Neves é uma pessoa muito dinâmica e visionária e tem um estilo um pouco diferente dos outros criadores de teatro com quem a companhia já tinha trabalhado. Existe essa vontade de nos expormos a diferentes criações, permitindo a diferentes criadores trabalharem com este tipo de elenco, que tem as suas particularidades. É mesmo importante o encontro da Companhia Maior com este universo do Ricardo, esta maneira de traduzir pensamentos e ideias. É uma grande aventura.


E ao Ricardo, o que o atraiu nesta proposta?

RNN: As parcerias com outros artistas e as suas visões diferentes da minha são sempre um ponto de partida que me estimula muito e me entusiasma. Talvez por um certo medo do futuro e da estagnação, um medo de não existirmos… Esta ideia de trabalhar com pessoas novas – seja com um elenco, como é o caso da Companhia Maior, seja com outros criadores, como um compositor, um cenógrafo, um dramaturgo – e encontrar, a cada trabalho, uma novidade é fundamental. Aqui, tenho um conjunto grande de pessoas que tem uma característica forte enquanto grupo, mas que depois individualmente são muito diferentes entre si. E isso é um estímulo. Sempre em busca da novidade, mantendo um caminho, mas encontrando coisas novas.

PV: … Até porque estas pessoas têm uma experiência de vida mais longa do que a tua, não é?
RNN: Claro. Mesmo nos ensaios, o trabalho de personagem com estes atores foi muito rápido, porque aplicam aquilo que são e as suas décadas de vida na sala de trabalho. E foi mais rápido do que é costume essa apropriação das personagens, o chegar à ideia de personagem.


Muitas vezes, os mais velhos ficam esquecidos, mas eles também podem trazer novidade, não é?

É importante dar-lhes o palco também a eles.

PV: Um dos objetivos desta companhia é conseguir garantir esse terreno, onde depois entram outros criadores. É mesmo importante criar esse terreno favorável a que estas pessoas continuem a trabalhar e a que consolidem ou desenvolvam competências.


E aqui o encenador não foi pelo caminho mais fácil ou, pelo menos, pelo mais óbvio, dando

a estes atores personagens completamente loucas num texto cheio de loucura…

RNN: Este espetáculo é feito a partir de Titanic, peça de teatro de Christopher Durang, que traduzi de forma muito livre e muito preguiçosa – ou seja, as coisas que não percebia, em vez de ir ao dicionário, inventava eu… Li esta peça há quase 10 anos, no verão de 2012, que foi muito importante na minha vida, porque descobri muitas coisas novas – e uma delas foi o Christopher Durang e o seu humor muito parvo e desinibido, muito exuberante, todos adjetivos que gosto de aplicar também aos espetáculos que tenho feito. Não sei se aqui era o caminho menos óbvio e menos fácil, talvez a dificuldade seja mesmo a de fazer comédia e a de encontrar o equilíbrio entre o prazer do ator a representar e o rigor que é necessário. E isso tem a ver com o que gosto de fazer, com os ensaios de repetição, em que procuramos uma estrutura, uma coreografia, uma partitura sonora, sempre tentando manter a coisa viva. É um trabalho difícil. Nunca se sabe bem de onde vem, não é? Esse lado misterioso da comédia também me agrada. Porque é que rimos? O riso mistura o lado intelectual com o lado emocional. É as- sim que surge o impulso da gargalha- da. Qual é a receita disso não se sabe, porque mistura muita coisa. É como os perfumes, em que se misturam várias essências e depois gostamos ou não gostamos. Não sabemos qual a receita para esta cócega funcionar. E “cócega” aqui é uma palavra muito importante: como é que aquele toque numas pessoas faz rir, noutras faz doer e noutras é indiferente e não provoca nada? Com o mesmo toque no mesmo sítio, a có- cega acontece ou não acontece. Tem a ver com muita coisa que não sei bem de onde vem. Esse lado de nunca saber realmente o que vai acontecer num encontro é que me atrai. Cada trabalho é sempre uma descoberta.


Acreditou que este elenco se ia encaixar bem numa comédia mais do que noutro género teatral?

RNN: Não pensei nisso, foi uma pro- posta que lhes fiz…
PV: Este espetáculo vem na linha da- quilo que estás a investigar como artista, não é? Mais do que uma coisa que a Companhia Maior te trouxe, estás a trabalhar com eles aquilo que tens vindo a descobrir no teu percurso. Para a companhia, esta foi uma proposta bastante aliciante, no sentido em que não foi a abordagem que muitas vezes se faz, pensando “vamos trabalhar com pessoas com uma longa experiência de vida, então, vamos pelo lado da memória, dos sonhos de infância…” e tu puseste isso de parte e encaraste a Companhia Maior como um elenco como outro qualquer. Acredito que isso foi uma riqueza.

RNN: Na apresentação da Companhia Maior existe essa consciência de se- rem todos atores com mais de 60 anos, mas depois, na verdade, estou simples- mente numa sala com atores, que têm essa coincidência relativa à idade, mas isso é só um ponto de vista – até por- que a diferença de idades entre a pessoa mais nova e a pessoa mais velha da companhia ainda é grande.

PV: Mas há uma coisa que ganhamos mesmo com a idade, que é a capacidade de nos rirmos de nós próprios, e penso que isso também favoreceu este trabalho que quiseste explorar.

RNN: Sim, aqui ninguém tem medo do ridículo e isso é muito positivo.


… Isso é muito importante nos espetáculos do Ricardo…

RNN: Os heróis aborrecem-me, aborrecem-me no sentido em que a ideia de herói me parece um bocadinho aborrecida. E a ideia de artista-herói que vai salvar o mundo com o seu espetáculo ainda me soa mais aborrecida. Se nos afastarmos o suficiente para olharmos para o planeta Terra com uma lupa, somos uns bicharocos que andamos aqui a povoar o planeta e é só isso. Somos uns bicharocos que acordam ranhosos, com fome e transpiramos se andamos muito depressa e não aguentamos com uma ventania – e isso é o que gosto de trabalhar. Acredito que este espetáculo oferece um bocadinho de alegria e de ânimo e acredito que isso é funda- mental porque é um motor gigantesco para tudo. E, às vezes, pergunta-se qual é a utilidade da arte… afinal, qual é a utilidade da música de Mozart, serve para quê?!


Ter à disposição um elenco de quase 20 atores levou a este dispositivo dramatúrgico da mesma personagem ser interpretada simultaneamente por dois ou três atores ou vem do gosto que tem pelos coros e pelas vozes múltiplas?

RNN: Não sei se veio primeiro o ovo ou a galinha… Acabou por ser inevitável quando decidi fazer este texto. Esta divisão de personagens foi uma solução e, ao mesmo tempo, a continuação de um tipo de trabalho que tenho desenvolvido e que me dá prazer, que é ter mais do que um ponto de vista sobre as personagens. Desta forma, posso tomar duas ou três decisões sobre a mesma frase, posso chegar a definições diferentes de uma mesma personagem.


Também a palavra cantada volta nesta encenação.

RNN: Mais uma vez, foi uma coincidência. O Teatro do Elétrico tem um grupo de artistas, alguns que pertencem à estrutura, outros a estagiar, e percebi que todos gostam de música e de cantar e que metade deles tocam um instrumento. Decidi aproveitar isso para o espetáculo. E, depois, volto sempre a isso, a essa coisa excitante que não sabemos para que serve, que é a música e que, para mim, é sempre um estímulo. Penso que nos ajuda a tornar as coisas mais claras, porque vai direta ao nosso lado emocional. É uma espécie de explicação abstrata. E isso é sempre uma excitação, acho que esta é mesmo a palavra certa. É a excitação maior. É muito emocionante.


E que Titanic é este, afinal?

RNN: É um navio que faz uma travessia, que não chegamos a dizer qual é e onde se cruzam muitas histórias, como esta que aqui se conta do desencontro constante destas personagens. Esta loucura que o espetáculo tem é, mais uma vez, um caminho muito parecido com o dos sonhos, da amnésia, do equívoco. Estas seis personagens estão a viver ali uma espécie de pentágono amoroso, uns atrás dos outros e uns a fugir dos outros. O espetáculo fala de família, de amor, de nos sentirmos sozinhos no mundo, de desejarmos ou não morrer, mas penso que são tudo coisas que só vão ressoar nos espectadores quando forem a caminho de casa…


… durante o espetáculo somos distraídos por Folares de Olhão e por chinchilas…

RNN: Sim, com muita vulgaridade. Há um lado vulgar no texto, que vem dessa ideia de sermos só uns bicharocos a querer ser gigantes, mas que não somos mesmo mais do que vulgares. É um lado do autor que também adoro. No original, o Folar de Olhão era pão branco, sonoramente a tradução não tem tanta graça… e ainda estive indeciso entre Folar de Olhão e Pão de Ló de Ovar… mas estava a fazer um espetáculo no Algarve quando fiz a tradução, então ficou esse. E esse lado vulgar do texto, de rasteiro, às vezes, mistura-se com um certo lirismo, uma certa poesia, não tanto no que se diz mas na forma como se está. Isso atrai-me muito e penso que é a verdadeira essência do ser humano, essa mistura de cristalino, limpo, etéreo, de amor com o sexo sujo, que transpira.


E tem ainda mais impacto quando no palco estão estes atores.

RNN: Porque não é uma expectativa que se tenha. Não estamos à espera que eles digam aquele tipo de frases, acaba por ser surpreendente. Parece que esperamos que alguém com mais idade só abra a boca para dizer frases de sabedoria. E aqui é ao contrário: são personagens perdidas, sempre na iminência da morte.