Filipa Francisco

Força

2015

Filipa Francisco trabalha com as pessoas e as suas características individuais ou de comunidade com paixão. É também uma artista interventiva atenta aos direitos humanos, como vimos nas suas representações da violência doméstica (No Meio), das mulheres da República (Para Onde Vamos?) e da exclusão social de reclusos (Rexistir). Na obra com os jovens da Cova da Moura (Íman) e os ranchos folclóricos (A Viagem) a preciosidade da diferença cultural é evidente. Estas exigentes aventuras harmonizam sátira e beleza e transmitem o valor da arte para a experiência e participação na vida. Com a Companhia Maior a coreógrafa elogia a força latente de corpos que julgamos frágeis e dá voz a pessoas que querem falar do que está a acontecer ao mundo.

Paula Varanda

Ficha Técnica e Artística

Criação e direção artística
Filipa Francisco

Banda sonora e direção musical
António-Pedro

Cocriação e interpretação
– Grupo dirigido por Filipa Francisco
Carlos Fernandes
Carlos Nery
Celeste Melo
Cristina Gonçalves
Isabel Millet
Iva Delgado
João Silvestre
Jorge Leal Cardoso
Júlia Guerra
Kimberley Ribeiro
Michel
Paula Bárcia

– Grupo dirigido por António-Pedro
Angelina Mateus
Diana Coelho
Helena Marchand
Manuela de Sousa Rama
Maria Emília Castanheira
Maria José Baião

Codireção musical
Michel
Assistente
Kimberley Ribeiro
Direção coral
Margarida Mestre
Desenho de luz e direção técnica
Carlos Ramos
Guarda-roupa
Ainhoa Vidal
Textos sobre o espetáculo
Paula Varanda
Fotografia
Bruno Simão
Vídeo
Fábio Silva
Produção executiva
Companhia Maior
Produtor
Luís Moreira

Agradecimentos

Backlight
Companhia Nacional de Bailado
Eficácia Livre
El Corte Inglés
Escola Superior de Música de Lisboa
Espazo Self-Storage
Jorge Silva
Laurentiu Ivan Coca
Maria João Cortes
Neorelva Embalagens Metálicas SA
Restart Instituto da Criatividade, Artes e Tecnologias
Vitor Lajes
Viveiros das Naus

 “Carinhoso”
Letra de João de Barros
Autor da música Pixinguinha
Interpretado por Maria José Baião

Apresentações

ESTREIA
12 a 15 de novembro 2015
Centro Cultural de Belém
Lisboa

Que é que eles pensam e não dizem?

Perante um manifesto claro do sentido de responsabilidade e desejo pelo bem-estar da família, que uma pessoa mais velha carrega; perante a consciência clara de um presente conflituoso, no país e no mundo, que tem que se enfrentar ano após ano; perante a constatação de que as dúvidas crescem com a vida e que é assim que cresce a sabedoria, Filipa Francisco propôs às mulheres e homens da Companhia Maior trabalharem sobre a força como palavra-chave para um espectáculo construído em conjunto. Prosseguindo um processo criativo de procura e experimentação contínua dos efeitos desse estímulo – um método que a coreógrafa desenvolve há muito e que não é raro na dança contemporânea – todos enfrentaram a fragilidade da indefinição e das incertezas, que tem dias que enfraquecem e desmotivam; assim chegaram a uma composição coerente e original que é esta nova obra da Companhia Maior. São os músicos que anunciam o princípio de uma jornada decidida e de fôlego, onde uns e outros se cruzam no caminho e encontram o que os une, definindo uma linha de força invisível. Ela é carregada do simbolismo da marcha em uníssono e de braços entrelaçados, que não deixa ficar ninguém para trás e reclama visibilidade para os precários e os fragilizados, silenciados ou esquecidos. Neste colectivo emerge, com subtileza, uma crítica firme à sociedade de consumo e é legível a tormenta real de quem nela não detenha poder financeiro. Contrapõem-se, então, valores como a força das emoções e dos afectos e, através de muitas perguntas, as inquietações profundas e as posições que se tomam na vida afirmam–se. Em suma, os que agem, com atitude, ganham. E os que assistem só não perdem o conforto; até ver, porque essa segurança também é efémera. Não é por acaso que aparece nesta peça uma citação da célebre Mesa Verde de Kurt Joos (1932). A Filipa tinha  vontade de aproveitar a rica experiência de vida dos intérpretes da companhia para recuperar memórias de dança; e, tendo uma das bailarinas efectivamente dançado essa coreografia no passado e, havendo na atmosfera do grupo uma genuína preocupação com a guerra e os refugiados, os excertos da secção “Dança da Morte”, da peça de Joos, fazem todo o sentido. O seu diálogo com os demais intérpretes e com os esboços de outras danças também é produtivo: mostra que há, apesar de tudo, possibilidades de resistência e alternativas de amor e de alegria.

A dado momento – especificamente com o toque da massagem – levantam-se questões sobre a proximidade e a privacidade: porque abandonamos a comunicação pelo toque após a juventude? Tocar é bom ou é invasivo? Foi involuntariamente que apareceu nesta peça o que eu reconheci como uma imagem do não menos famoso Kontaktoff de Pina Bausch (1978) – aquela cena de uma mulher que se submete às mãos de muitos homens – mas que agora, em Força, se concretiza com um homem acarinhado por muitos companheiros. Esta associação, de um olhar exterior, é contudo apropriada; não só as interrogações acima são, mais uma vez, pertinentes nas sociedades modernas – tanto mais quando a idade avança e o corpo se resguarda ou esconde – como em vários momentos da sua carreira Filipa Francisco tem prestado homenagem a Bausch. Acresce que lembrar os ausentes também contribui para a nossa força interior e, no espectáculo, essa componente exprime-se, pela palavra ou pelo gesto.

Filipa Francisco trabalha com as pessoas e as suas características individuais ou de comunidade com curiosidade e paixão. Ela é também uma artista interventiva, atenta aos direitos humanos, como vimos nas suas representações da violência doméstica (Nu Meio) das mulheres da República (Para Onde Vamos?) e da exclusão social de reclusos (Rexistir). Mais tarde, nas obras com as jovens da Cova da Moura (Íman) e com os ranchos folclóricos (A Viagem), ficou evidente o reconhecimento da preciosidade da diferença cultural. Nestas exigentes aventuras, a coreógrafa tem sabido harmonizar sátira e beleza e transmitir o valor da arte para a experiência e participação na vida.

Na Companhia Maior a artista encontrou exemplos surpreendentes e inspiradores da força de vontade que mostram, também aos mais novos, como o empenho, a aceitação e a cumplicidade nos levam longe. Nesta peça a coreógrafa elogia a força latente de corpos que julgamos como frágeis e dá voz a pessoas que querem falar do que está a acontecer ao mundo. Dentro destas pessoas residem histórias individuais fortes que, não sendo na maioria reveladas, vibram nos corpos que actuam com movimentos, com voz, com adereços e instrumentos.

Também faz parte desta Força uma orquestra. António Pedro, colaborador cúmplice de longa data, desafiou alguns elementos da companhia a resolverem artisticamente a sua revolta. Essa parte do grupo construiu a dimensão sonora do manifesto e tem em mãos, como diz o compositor, um exercício de democracia: fazem juntos e assumem a liderança à vez, conforme é preciso e consoante as competências de cada um.

 

Paula Varanda

A autora escreve segundo a antiga ortografia.

© Companhia Maior