Peter Vandenbempt
Um de nós
2014
Um de nós é uma peça construída rigorosamente em três partes diferentes. A primeira contém cerca de 200 declarações sobre política que começam com as palavras “Na política…” e acabam em opiniões, afirmações mais ou menos rigorosas, clichés e outras supostas verdades que conhecemos de conversas de café, da televisão ou da Internet. Aparentemente dizem qualquer coisa de verdadeiro sobre política, mas, ao mesmo tempo, são facilmente refutáveis. A acumulação de declarações ilustra a complexidade do tema.
A segunda parte, com número idêntico de declarações, começa com as palavras “No amor…”. As afirmações sobre o amor implicam um redimensionamento da primeira parte. Depois da política e da vida pública, passamos às relações amorosas. Ambos os sistemas de relacionamento apresentam problemas similares, o que é ilustrado de forma divertida pelo facto de a maioria das afirmações sobre a política se aplicarem também ao amor. A maior diferença é o grau de envolvimento emocional.
Na terceira parte, somos confrontados com uma coletânea de fait-divers, confissões e segredos pessoais dos próprios atores. A redução da escala continua: da política, através das relações pessoais ao indivíduo. Assim, cada frase desta terceira parte começa com as palavras “Um de nós…”.
O texto é criado em colaboração com os atores. As respostas são autênticas, mas ninguém sabe a quem pertence cada declaração ou confissão.
Ficha Técnica e Artística
Encenação
Peter Vandenbempt
Intérpretes
Carlos Fernandes, Elisa Worm, Isabel Simões, João Silvestre, Júlia Guerra, Maria Helena Falé, Maria José Baião, Maria Emilia Castanheira
Assistência de encenação
Henrique Neves
Texto: Peter Vandenbempt em colaboração com o elenco e Henrique Neves
Tradução
Susana Canhoto
Apoio à tradução
Flemish Literature Fund
Cenografia
Emma Denis
Construção de cenário
João Paulo Araújo
Registo vídeo
Patrícia Saramago
Fotografia
Bruno Simão
Produtor da Companhia Maior
Luís Moreira
Assistente de produção
Lúcia Marta
Encomenda
Maria Matos Teatro Municipal
Coprodução
Companhia Maior, Tristero e Maria Matos Teatro Municipal
Tristero é apoiada por Flemish Authorities – International Projects e Vlaamse Gemeenschapscommissie van het Brussels Hoofdstedelijk Gewest
Agradecimentos
Centro Cultural de Belém
Comuna Teatro de Pesquisa
Teatro Camões
Eficácia Livre
Apresentações
ESTREIA
29 outubro a 2 novembro 2014
Maria Matos Teatro Municipal
Lisboa
REPOSIÇÃO
24 março 2018
Auditório Municipal António Silva
Cacém
Fotografias desta página: © Bruno Simão
Entrevista de Mark Deputter
a Peter Vandenbempt,
outubro 2014
Um de nós não é uma peça de teatro no sentido tradicional do termo, mas antes uma espécie de apresentação sobre política, o amor, nós próprios…
É uma peça construída rigorosamente em três partes diferentes. A primeira contém cerca de 200 declarações sobre política. Começam todas com as palavras “Na política…” e acabam em opiniões, afirmações mais ou menos rigorosas, clichés e outras supostas verdades que conhecemos de conversas de café, da televisão
ou da Internet. Aparentemente dizem qualquer coisa de verdadeiro sobre política, mas, ao mesmo tempo, são facilmente refutáveis. A acumulação de declarações ilustra a complexidade do tema. Tudo o que tem que ver com política é referido: estratégia, traição, compromisso, senso comum…
A segunda parte apresenta um número idêntico de declarações que começam com as palavras “No amor…”. O conjunto de afirmações sobre o amor implica um redimensionamento da primeira parte. Depois da política e da vida pública, passamos às relações amorosas. Ambos os sistemas de relacionamento apresentam problemas similares, o que é ilustrado de forma divertida pelo facto de a maioria das afirmações sobre a política se aplicarem também ao amor. A maior diferença é o grau de envolvimento emocional.
Este envolvimento é a chave para a terceira parte, em que somos confrontados com uma coletânea de fait-divers, confissões e segredos pessoais dos próprios atores. A redução da escala continua: da política, através das relações pessoais ao indivíduo. Assim, cada frase desta terceira parte começa com as palavras “Um de nós…”. O texto é criado em colaboração com os atores: durante o período dos ensaios cada um recebe uma série de perguntas — algumas gerais, outras bastante íntimas — às quais podem responder em anonimato, através de um endereço de e-mail criado de propósito. As respostas são autênticas, mas ninguém sabe a quem pertence cada declaração ou confissão.
A política é uma questão pública, ao passo que o amor pertence claramente à esfera pessoal. Porque é que o confronto de ambos é tão elucidativo?
Acho que tanto a política como o amor se regem por regras similares. A sociedade precisa de uma forma de organização para nos fazer viver todos juntos. Tal como uma relação precisa de determinados acordos para durar. Na sociedade, essas regras são definidas sobretudo pela política; numa relação, é uma questão de acordo entre os dois parceiros. E esse tipo de acordos estão sujeitos a argumentos racionais e emotivos do mesmo tipo.
Em Um de nós, isso é mostrado pelo facto de as mesmas frases poderem ser aplicadas à política e ao amor. Há dez anos, comecei a escrever o texto, porque havia um forte ambiente antipolítica na Bélgica, que se traduziu em votos nos partidos de extrema direita. Acho que desde essa altura a situação mudou ligeiramente; as pessoas têm consciência de que a política ainda é necessária, mesmo sendo considerada um mal necessário. Tenho a impressão de que aqui, em Portugal, não é assim tão diferente, apesar de muitas pessoas parecerem estar fartas da política, de sentirem que não há remédio. Tendo a achar que estão enganadas e dir-lhes-ia, parafraseando um lema que vi lá fora, na rua: “a política é demasiado importante para ser deixada nas mãos dos políticos”.
A Tristero estreou esta peça em neerlandês, em 2005, com os quatro membros principais da companhia. Em 2011, foi feita uma versão francesa, em colaboração com a companhia teatral belga de língua francesa Transquinquennal, que ainda está em digressão. Agora, segue-se uma versão portuguesa com a Companhia Maior. Como é que explica a longevidade desta peça? Quais são as principais mudanças entre as três versões, especialmente esta última?
Os dois principais temas da peça, política e amor, são obviamente intemporais. Não apenas na vida quotidiana, mas também na arte, em peças de teatro, são assuntos muito abordados. E isso é óbvio, porque o amor e a política são dois elementos que têm uma influência extrema sobre as nossas vidas. Uma vez que decidi desenvolver a peça em torno de lugares-comuns, as chamadas verdades e sabedorias, as deixas acabaram por soar “universais”; parecem aplicar-se a qualquer época ou lugar. Claro que todos os períodos têm as suas especificidades e singularidades e essas também têm lugar no texto através de detalhes vários, tratando-se de questões contemporâneas ou acontecimentos atuais específicos. Obviamente que esses detalhes mudam quando fazemos uma versão portuguesa. Esta exige outras ênfases, nuances, mas a base permanece praticamente a mesma: uma desconfiança saudável em relação à política e ao amor. As grandes mudanças na política portuguesa nos últimos 40 anos estão presentes e são uma fonte de inspiração gratificante.
A peça original foi representada há quase dez anos pela Tristero, na altura um grupo de jovens atores. Como é que é fazer uma nova versão com um conjunto de intérpretes com 60, 70, 80 anos? Isso influencia a forma ou o conteúdo?
Sim e não. Claro que as referências culturais e políticas são diferentes. O contexto (político) belga é diferente do português. Mas quando apresentei a lista de questões pessoais aos intérpretes, descobri que as respostas deles eram basicamente as mesmas que tinha obtido dos meus colegas mais novos. Sinto que os intérpretes mais velhos se arrependem mais, por exemplo, mas, no fim de contas, sentem-se igualmente inseguros ou preocupados. E conseguem manifestar o mesmo discurso obstinado e enérgico do elenco mais novo.
Nesse sentido, não deixa de ser uma experiência enriquecedora e gratificante para mim trabalhar com todas estas personalidades diferentes, cada uma com as suas esquisitices, as suas perspetivas, mas também a sua própria curiosidade e afabilidade. No que diz respeito ao espetáculo, vamos atuar da mesma forma que fizemos antes. Passar tempo na cama, discutir uma série de tópicos claramente não tem que ver com a idade. O público verá um elenco diferente, mais velho, e a princípio isso pode suscitar uma imagem mais melancólica e nostálgica, mas rapidamente se darão conta de que os intérpretes são tão espirituosos, provocadores ou até excitantes quanto um elenco mais novo!
Espirituoso e provocador são adjetivos que têm caracterizado o trabalho da Tristero desde o início. Porque é que o humor e a ironia surgem sempre no seu trabalho?
Isso é verdade. Mesmo que não utilizemos um texto cómico, tentamos ainda assim abordar as coisas de uma forma cómica. Não de forma burlesca, a nossa comédia é melhor descrita como “inteligente mas não intelectual”, “irónica mas não cínica”. Gostamos de pensar que o humor tem um efeito castigador, que rirmos de nós próprios e rir em geral pode talvez reconciliar-nos e ao nosso público com o absurdo da existência. Julgo que também está ligado a quem nós somos (os membros da Tristero) e ao facto de olharmos para a vida de uma forma positiva e de gostarmos de uma piada.
É também a forma mais imediata de chegar ao público? A Tristero gosta de criar uma cumplicidade com os espectadores, isso também acontece em Um de nós…
A Tristero faz diferentes tipos de espetáculos mas, seja para um público mais vasto ou especializado, há sempre alguma coisa de familiar — alguma coisa que se reconhece — naquilo que contamos. O nosso trabalho não relata “grandes histórias” ou fala de reis e rainhas, antes concentra-se em pessoas vulgares como nós. Por outro lado, a maneira como contamos ou apresentamos essas histórias pode ser diferente, estranha ou incomum. Como a construção formal de Um de nós, por exemplo.
Essa construção formal é muito visível nas três partes de texto e nas repetições nas construções frásicas, mas também no cenário, que coloca os intérpretes todos num só lugar e direcionados para o público. Porquê a cama?
Ah, essa é uma ideia da cenógrafa com quem trabalhámos… Na altura em que acabei o texto, tivemos muitas discussões sobre a forma como o íamos apresentar. Ao início, eu não queria mais do que diferentes tipos de cadeiras, mas senti que isso não faria justiça ao texto. Assim, continuámos a discutir o assunto durante muito tempo. Uma manhã, a cenógrafa, Emma Denis, ligou-me e disse: “Já sei que cenário fazer! Ontem à noite, quando ia dormir, estava a discutir o problema com o meu marido deitada na cama e apercebi-me de que a solução estava ali, mesmo debaixo do meu nariz!” A cama é realmente um lugar onde se discutem muitas coisas: amor, sexo, política e até cenografia!