Tónan Quito
Sonho de uma Noite de Verão
2016
Em Sonho de uma Noite de Verão (1594/96), Shakespeare, inspirando-se na mitologia clássica, cruza várias histórias, apresentando personagens em conflito e instala a confusão, num sucessivo jogo de encontros e desencontros amorosos. Esta comédia vai oscilando entre realidade e fantasia; entre o poder político e social com a sua ordem e um mundo caótico representado pela floresta onde habitam fadas e elfos. Antes do casamento de Teseu e Hipólita, um casal apaixonado para fugir às leis da cidade vai para a floresta, atrás deles vão outros dois; para lá já tinha ido uma trupe de atores amadores ensaiar uma peça para apresentar no dia da boda. Aqui, Oberon e Titânia estão mal de amores. É então que surge Puck e é o caos do amor… e tudo se torna num grande sonho.
Um declaração de amor
Só. Estou tão só. Fica comigo. Toca-me. Preciso de ti.
São estas as palavras que parecem ecoar por toda a peça; na cidade e no bosque. A ordem e as leis escritas não interessam, apenas subvertem o desejo e deixam todos equivocados. É preciso ir para a zona do caos, o bosque, o sítio onde não há ordem, para nos encontrarmos com os impulsos, o desejo e amor… para continuarmos enganados. E enganos foi o que fomos encontrando neste texto: uma urgência de falar de amor, de precisarmos uns dos outros para sobreviver, para prolongarmos um pouco mais a vida. E fomo-nos dando uns aos outros um pouco mais dia-a-dia, até chegarmos a este Sonho: como se, para cada um, toda uma vida, todo um amor coubesse em duas horas. E esta é a realidade.
Queria voltar rapidamente a Shakespeare (também um amor), continuar esta relação; em Ricardo III, uma peça muito masculina, era o poder que estava em causa. Aqui o poder continua em causa, mas já não é o centro. Ao colocar a peça no bosque, Shakespeare cria uma nova ordem onde tudo pode acontecer, onde todos se podem amar e entregar-se ao desejo; e a peça torna-se feminina, sendo a personagem Titânia o grande poder da peça. Interessou-me montar esta peça depois de Ricardo III, na medida em que o mesmo autor que cria um cemitério cria também um bosque onde a vida rebenta por todo o lado; onde existem fadas, um rei e rainha de outro mundo, e onde os apaixonados vão correr atrás uns dos outros, loucos e livres para a sua paixão. E quem melhor para fazer implodir este texto se não estes atores? A paixão e a generosidade deles são demolidoras: a vontade de criar novas ordens, de desarrumar…
Ao entrar neste bosque que é a Companhia Maior, também me perdi de amores e lá fui encontrando o caminho de saída, mas, felizmente: “there’s no cure for love”.
Assim que pensei neles pensei no Sonho de Uma Noite de Verão, pela sua pulsão, pela anarquia dos seus corpos, pela capacidade que eles têm de se inventarem e de nos fazerem seguir os seus impulsos; mas sobretudo por serem livres. Só gente assim se permite amar.
E foi também para responder à personagem Borbota que quis fazer este Sonho: “A razão e o amor não andam muito juntos, nos dias que correm.” Ou andam?
Precisamos de mais bosques.
Tónan Quito
Ficha Técnica e Artística
Encenação:
Tónan Quito
Texto original:
William Shakespeare
Intérpretes
Celeste Melo – Lua
Carlos Nery – Teseu
Maria Helena Falé – Hipólita
João Silvestre – Egeu
Jorge Leal Cardoso – Lisandro
Carlos Fernandes – Demétrio
Maria Emília Castanheira – Hérmia
Isabel Simões – Helena
Maria José Baião – Mestra Cunha, carpinteira/Prólogo
Isabel Millet – Mestra Borbota, tecedeira/Píramo
Júlia Guerra – Mestra Flauta, foleira/Tisbe
Cristina Gonçalves – Mestra Bica, funileira/Muro
Manuela de Sousa Rama – Mestra Justina, marceneira/Leão
Paula Bárcia – Mestra Escanzelada, costureira/Lua
António Pedrosa – Oberon
Kimberley Ribeiro – Titânia
Elisa Worm – Puck
Helena Marchand, Catarina Rico, Angelina Mateus – Fadas
Tradução e versão cénica
Fernando Villas-Boas
Cenografia
F. Ribeiro
Figurinos
José António Tenente
Desenho de luz
Daniel Worm
Desenho de som
Pedro Costa
Assistência de encenação
Rita Durão
Fotografia
Bruno Simão
Vídeo
Marco Arantes
Produção executiva
Companhia Maior
Produtor Companhia Maior
Luís Moreira
Coprodução
Centro Cultural de Belém
Companhia Maior
Parceiros
Câmara Municipal de Lisboa – Junta de Freguesia de Belém
HomemBala
Apoios
ESPAZO self-storage
Eficácia Livre
Exército Português – Regimento de Artilharia Antiaérea Nº 1
Agradecimentos
Flávio Pereira
Óscar Gouveia
Capitão Ladeiro
Octávio Gonçalves
Teatro Nacional D. Maria II
Apresentações
ESTREIA
2, 3 e 4 de dezembro de 2016
Centro Cultural de Belém
Lisboa
Fotografias desta página: © Bruno Simão
Sonho de uma noite de Verão
Este Sonho de Uma Noite de Verão foi escrito para uma festa de casamento cortesã e, como compete, saúda o amor e o desejo; o entendimento entre os pares e de todos à sua volta… e, enfim, a ordem do acasalamento como um fenómeno de grandeza planetária. Não só a Cidade responde ao encontro, como também a Natureza em volta afina, ou parece afinar o seu ritmo pela alegria do casal ou casais.
Ou pelo menos é o que diz a tradição deste tipo de animações festivas. Shakespeare decidiu complicar esse caminho simples e iluminado para a harmonia e povoar a festa de figuras que aumentam imensamente a confusão do percurso, mas que acabam por colorir e aumentar a alegria do desenlace… ou, enlace, podemos dizer, nesta ocasião.
Vemos Teseu e Hipólita, figuras lendárias, que nesta peça de Shakespeare nos aparecem mais terrenos ou mesmo domésticos, prontos para o seu casamento semidivino, e que acabarão por ser padrinhos de dois casamentos humanos mais ou menos acidentais. Hérmia, Helena, Lisandro e Demétrio formam os dois jovens casais humanos que, em fuga da Cidade e da sua lei, se irão perder num bosque onde impera outro casal, Titânia e Oberon, o macho e a fêmea mais poderosos desse reino de magia e possibilidade, que, zangados como é seu costume, vão baralhar todos à sua volta, como quem quebra loiça até acalmar. Como são eternos, podem zangar-se à vontade… O casal mágico vai interferir na corrida dos amantes, e também vai baralhar as voltas ao quarto grupo desta desordem amigável, um grupo de obreiras da Cidade que se mete no bosque para ensaiar uma peça de teatro, em saudação das bodas de Teseu e Hipólita, e em troca de uns honestos “cobres”. O ensaio das obreiras acaba revirado por algumas partidas mágicas… mas tudo acabará em bem, com a peça das obreiras a servir de serão teatral desengonçado diante dos senhores, e com humanos, semideuses, elfos e fadas, todos unidos por vontade dos monarcas do sonho, Oberon e Titânia, que se reconciliam para abençoarem as camas frescas dessa noite.

Dentro desta festa, a Companhia Maior criou a sua festa. O grupo brinca ao amor e aos calores da juventude, que os novos não conhecem tão bem como os que já deram algumas voltas ao parque… ou ao bosque. O grupo pede emprestado a este Sonho o seu tema da seriedade ligeira de estar aqui, ao alcance de humanos e de imortais; do jogo de viver e de fazer teatradas. Fizemos tudo com a mesma alegria de uma das teatreiras da peça, a figuraça da companhia, a quem demos o nome português de Borbota, a tecedeira. Fizemos como tem valido a pena fazer na vida deste grupo… e na vida em geral, feitas as contas. Ora vejam se não é:
Vamos aparecer. E lá vamos ensaiar, obscenamente e corajosamente. Haja suor. Haja perfeição. Pronto. Vamos a cumprir. Ou vai ou racha!
Fernando Villas-Boas