Marco Martins

Natureza Fantasma

2021

Todos os anos, desde que em 2010 a Companhia Maior foi criada, é endereçado um convite a um artista ou colectivo para criar um espectáculo para este grupo. Em 2020, devido à pandemia que nos desola, não foi possível cumprir este desígnio. Assim se chegou a um novo tipo de criação, uma instalação baseada nas imagens e memórias de infância dos seus intérpretes.

Partindo dos álbuns de família deste elenco, Marco Martins, em colaboração com Fernanda Fragateiro e Gonçalo M. Tavares, criou Natureza Fantasma, uma instalação a partir da forma como estes registos moldam a memória, fixando determinados acontecimentos de forma fantasmagórica.

Sendo um arquivo fotográfico um repositório mais ou menos sistemático, a sua dimensão pessoal e familiar aponta para uma construção em que o tempo se reveste de traços e narrativas afectivas, para além da sua dimensão estritamente cronológica.

Fotografias e filmes são, contudo, sempre formas de registar acções e informação, possuindo uma materialidade intrínseca e constituindo um recurso de expressão que os distingue dos outros discursos encontrados na dimensão pessoal e familiar.

A representação visual desse tipo de eventos (fotografias de estúdio, férias e diversas outras efemérides domésticas), implica sempre a construção de uma imagem representativa de uma narração que se pretende controlar.

Do confronto com essas imagens e a partir da presença das pessoas que compõem a Companhia Maior, agora forçosamente dissolvida no virtual, Natureza Fantasma agarra essa virtualidade como potência, dando corpo ao que está latente na dimensão ficcional de todas as biografias.  

Luz e Fogo​

1.

A memória é uma forma de o cérebro colocar imagens na cabeça que não existem cá fora – e perder a memória é um incêndio algures no nosso sótão mais privado – e as imagens, já sabemos, são bem inflamáveis. As palavras ardem a uma temperatura, as imagens a uma outra – talvez mais baixa, talvez mais alta, não sabemos. Estudemos, pois, quem perde a memória; o que perde primeiro: palavras ou imagens? 

Sabemos que as canções ficam quase sempre para último, como a definitiva resistência – mas as canções não são palavras, são palavras com certo ritmo; são palavras elevadas a um qualquer estado aéreo que as faz aproximar mais do céu que da terra. As canções, que os elementos da Companhia Maior cantam, ficarão na nossa memória e não sairão tão cedo, isso é evidente e é apenas um exemplo.

A música é talvez o que fica, mesmo em bailarinos: como num incêndio onde tudo o que é material é destruído, mas das cinzas vem um som, uma canção.

É isso perder a memória, das cinzas vem um som. E muitas vezes esse som é uma canção de infância.

E assim definimos rapidamente aqui uma regra: são as canções de infância que melhor resistem aos incêndios.

O fogo não destrói o som. E isso tem de ser repetido: o fogo não destrói o som.

2.

A infância é evidentemente um sítio onde o nosso corpo estava como quem está no estrangeiro. Pode ser um feliz país estrangeiro ou um infeliz país estrangeiro, mas sim, nenhuma criança conhece as palavras dessa língua – e um adulto ainda menos.

3.

Perder a memória como quem está diante do último incêndio no sótão dos pais.

E diga-se rapidamente: a morte dos pais é isso: o incêndio principal. Com a morte dos pais, vai esse armazém afectivo para o céu ou para a terra ou directamente para um local, no corpo do filho, onde a vida choca de frente com os seus limites.

4.

E as fotografias são memória em película.
Quando pegas na tua memória com as mãos podes queimar-te.
As fotografias são feitas em parte de fogo, isso é evidente.
As imagens que vemos nesta exposição confirmam isso.
Cuidado com as mãos.

5.

O século XX ficou técnico dos pés à cabeça e o que, em muitos séculos, era memória em desenho e escrita bateu de frente com essa revolução.

Até ao final do século XIX, as mãos faziam objectos e memória – quando escreviam e desenhavam; mas agora parece bastar um dedo fazer o gesto mais simples e uma pequena pressão.

Só um completo desastrado de dedos não consegue, no século XXI, tirar uma fotografia ao seu pai ou ao seu filho. A família, a memória e a tecnologia, eis três palavras que se aproximaram muito – talvez demasiado – nos últimos anos.

6.

A máquina apoderou-se, portanto, da memória – e a fotografia introduziu uma tristeza técnica que antes não existia.

A tristeza a que um quadro tem acesso não é da mesma dimensão da tristeza a que se acede por via de uma fotografia.

Na imagem captada pela técnica, há a sensação de um momento que se perde para sempre e que na pintura, no desenho ou na escrita não existe da mesma maneira.

O realismo introduzido pela imagem técnica coloca o coração do memorioso em evidentes apuros.

Nunca somos nós na fotografia: na fotografia somos um familiar defunto de nós próprios. So não choramos sempre que vemos uma fotografia nossa por distraccão ou pudor. Agora e na hora da nossa morte.

7.

A fotografia de há cinquenta anos de um dos elementos da Companhia Maior é também, então, a fotografia de um familiar que morreu – um familiar bem próximo, o mais próximo que existe, aliás. Mas como designar este familiar que está na fotografia e que sou eu, afinal, anos atrás? Não é o meu irmão mais velho ou mais novo, não é o meu pai nem o meu filho, sou eu, mas claro que não sou eu. Eu já não sou o que fui – e as formas verbais da linguagem ensinam o possível ao portador afectivo dessa linguagem – e tenho aquilo que fui nas minhas mãos quando pego numa fotografia.

8.

O elenco Companhia Maior aí está, cada um sentado diante do tempo, em dissecação continuada ou saltada. Que fez e viu o meu corpo enquanto era novo e o que desse percurso ficou no exterior?

As imagens recuperam a sua origem, essa câmara escura que roubava luz e figuras da realidade e no início as virava de cabeça para baixo. E sim, a memória e também um acto manual: há nela imagens de cabeça para baixo, outras tortas ou deformadas, imagens que perderam a parte de cima ou os pés, imagens que perdem a cabeça, literalmente ou de modo metafórico.

9.

Uma imagem que perdeu a cabeça não é necessariamente uma fotografia de fotógrafo desastrado que faz retratos do pescoço para baixo como se o rosto fosse um segredo. Uma imagem que perde a cabeça pode ser também uma imagem alucinada, uma imagem com luz vinda de demasiadas direções – a alucinação é isso: uma luz distinta e imprevista.

10.

Cegueira como forma de cortar a recepcão da luz exterior e assumir que, a partir dali, todas as imagens são memória ou invenção, mas internas e privadas.

É sempre um trabalho de cegueira, a memória; só de olhos vendados quem vê pode recordar.

11.

Comovo-me com esta projeccão de uma luz que ainda existe embora a sua origem já tenha desaparecido. O corpo desapareceu mas ficou uma certa forma bela e antiga de interromper o escuro.

12.

Cada biografia é uma história, e as imagens que vamos tendo dessa história são paragens, pousadas onde os olhos um dia pararam. Se a vida é uma narrativa em filme e se, no limite, poderíamos ter a vida inteira filmada, desde o momento de nascimento ao momento da morte, então a fotografia será um frame sim, mas também uma interrupção, uma paragem: a abrupta suspensão do cinema real.

13.

Voltemos ao fogo, e terminemos com ele.

O arquivo fotográfico pessoal não é solido nem líquido, é puro fogo: material capaz de queimar os dedos. As fotografias estão ao lume, e não podes pegar nelas antes de arrefecerem. Como arrefecem as nossas imagens biográficas? O tempo diminui a temperatura perigosa das coisas, mas algumas coisas são indiferentes ao tempo, já o sabemos. Há fotografias que, a cada ano, se tornam mais febris, mais intoleráveis, mais inimigas da mão que as queira ter e dos olhos que as queiram ver.

14.

Em Natureza Fantasma, de Marco Martins, estamos diante de objectos demasiado luminosos para se poder manter sempre, diante deles, os olhos bem abertos; e estamos perto também de objectos em estado de fervura que levam demasiado tempo a chegar a essas temperaturas benignas para as mãos impacientes que todos temos.

Ver e tocar deveria ser sempre correr o risco de cegueira ou queimadura; aqui é.

Gonçalo M. Tavares

Ficha Técnica e Artística

De Marco Martins

Escultura e Espaço Cénico
Fernanda Fragateiro

Texto
Gonçalo M. Tavares
Marco Martins

Elenco Companhia Maior
Angelina Mateus, Carlos Fernandes, Carlos Nery, Catarina Rico, Cristina Gonçalves, Edmundo Sardinha, Elisa Worm, Isabel Simões, João Silvestre, Kimberley Ribeiro, Manuela de Sousa Rama, Maria Helena Falé, Michel, Paula Bárcia

Consultoria técnica, montagem e desenho de som 
João Ferro Martins
Digitalização e tratamento de arquivo
Blues Photography Studio
Som
Rafael Cardoso
Movimento
Cláudia Nóvoa
Vânia Rovisco
Assistência de encenação
Rita Quelhas
Administração Arena 
Marta Delgado Martins
Assistência de produção
Mafalda Teles

Direção de produção 
Mariana Brandão

FILME

Realização
Marco Martins
Elenco Companhia Maior
Angelina Mateus, Carlos Fernandes, Carlos Nery, Catarina Rico, Cristina Gonçalves, Edmundo Sardinha, Elisa Worm, Isabel Simões, João Silvestre, Kimberley Ribeiro, Maria Helena Falé, Michel, Paula Bárcia

Participação
Ema Araújo, Érica Santos, João Vasco Bettencourt Vieira, Laura Cepeda, Leonardo Delgado Martins, Manuel Viterbo Brandão Sardo, Melanie Neves, Mia Dewart Melo, Stefan Gomes
Direção de Fotografia
Carlos Lopes (Káká)
Lisa Persson
Marco Martins
Primeiro Assistente de Câmara
Lisa Persson
Segundo Assistente de Câmara
João Porto
Assistência de Realização
Teresa Mata
Chefe Maquinista  Rosa Vale Cardoso
Chefe Eletricista  Sérgio Caçoilo
Som  Bernardo Theriaga
Assistente de Imagem  Tomás Vieira
Guarda-Roupa  Isabel Carmona
Assistência de Guarda-Roupa  Mariana Lourenço
Maquilhagem e Cabelos  Nani
Assistência de Maquilhagem Ana Roma
Assistência de Cabelos Marisa Marques
Taxidermia Pedro Andrade, MUHNAC
Correção de Cor Mário Gaspar
Montagem  Leonor Teles
Rita Quelhas
Coordenação Pós-Produção Catarina Lino
Assistência de Produção  Filipa Falcão
Coordenação de Produção  Joana Vaz da Silva

ARTWORKS
Diretor
José Miguel Pinto
Coordenadora Artística Francisca Marques
Coordenador de Produção Valentin Neves
Mestre Serralheiro  Hélder Fernandes
Serralheiro  Jorge Santos
Assistente de Produção André Coelho
Carlos Arteiro
Pedro Graça
Assistente de Projeto  Ana Maria Trabulo
Coordenador Audiovisual Bruno Lança
Administrador Ecosteel  José Maria Ferreira

ATELIER FERNANDA FRAGATEIRO
Colaboradores
Filipa Alfaro
Filipe Meireles
Co-produção
Centro Cultural de Belém
Teatro Viriato
Companhia Maior
Arena Ensemble 

A Companhia Maior é apoiada pela Câmara Municipal de Lisboa no âmbito do RAAML e pela Junta de Freguesia de Belém

Apoios

Artworks
Câmara Municipal de Lisboa/MUDE – Museu do Design e da Moda
CAV – Centro de Artes Visuais
Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central
Cinemateca Portuguesa – Museu do Cinema
Ministério dos Filmes
Museu Nacional de História Natural e da Ciência
Uma Pedra no Sapato

Agradecimentos

António Câmara Manuel
Cláudio Torres
Equipa Peris Costumes
Filipa Reis
João Maria Gusmão
José Luís Borges Coelho
Luís Pavão
Maria José Pinto da Costa
Rafael Barreto

Apresentações

24 junho a 16 de julho 2021
Centro Cultural de Belém, Lisboa

14 a 24 de outubro 2021
Teatro Viriato
Viseu

Fotografias desta página: ©Bruno Lança – Artworks

Fantasma

A nossa relação com a memória é sempre desenhada a partir de espectros, de sombras que assolam o presente de forma mais ou menos insidiosa.

Começando de novo:

A nossa relação connosco é produzida a partir de espectros que sobem, como uma fina humidade, pelo nosso corpo a partir do chão, de um chão qualquer que, também ele, nos chama como uma memória.

Outra vez, ainda:

A nossa relação com o nosso corpo assenta, pesada, sobre os nossos pés por onde descem, em direção ao solo, espectros de todos os gestos que já fizemos ou que nos afetaram.

A relação com a memória e a matéria do trabalho que Marco Martins realizou com a Companhia Maior e que marca um final de ciclo na relação com o CCB, após 10 produções ao longo de mais de uma década. Realizada durante o período da pandemia, a obra fílmica consiste numa instalação concebida com a colaboração da artista plástica Fernanda Fragateiro e do escritor Gonçalo M. Tavares, uma situação imersiva na qual o espectador é convidado a entrar e deambular.

A deambulação é parte integrante da escolha de Marco Martins, na medida em que a opção por um espaço que, na sua utilização quotidiana, é um depósito, ou um armazém, implica um determinado tom, uma certa vibração: por um lado, é um lugar sem história, pelo menos sem H maiúsculo, um recetáculo de coisas, arrumadas, por vezes catalogadas; por outro lado, um depósito e um lugar de memórias para todos os que, com aqueles objetos, num qualquer tempo se cruzaram: a cadeira daquele lugar, aquele adereço, o mobiliário desenhado por Daciano da Costa para aquela sala. Ora é esta ambiência que foi escolhida para a apresentação do cinema expandido de Marco Martins com a Companhia Maior. Mas a escolha pelo formato da instalação implica, sobretudo, que as obras de arte e o espectador, ao contrário do que acontece em qualquer espetáculo, partilham o mesmo espaço (e não estão separados entre ≪espaço de ver≫ e ≪espaço de representar≫) e solicitam ao espectador que se desloque, que deambule, podendo voltar atrás, inverter o tempo da narrativa para ver de novo, ou decidir não ver e passar adiante.

 

Para compreendermos rapidamente do que estamos a falar, numa descrição simples, a instalação é composta por um conjunto de filmes projetados, por uma instalação escultórica de colunas, concebida por Fernanda Fragateiro, como árvores feitas com andaimes, que suportam sistemas que difundem vozes e outros sons, objetos, memorabilia e imagens fotográficas. E textos, de Gonçalo M. Tavares, que fazem falar as imagens, e nelas nos mergulham. Estas situações estão colocadas ao longo de um percurso cujo ritmo de fruição só e ditado pela vontade de quem vê

Não é, portanto, um espetáculo, ou seja, uma situação com uma determinada duração, mas a criação de simultaneidades. Há filmes em que gestos, palavras, lugares e sons contribuem para, no seu conjunto, configurar um acontecimento, sons e objetos que se sucedem num mesmo espaço e tempo, mas que nunca, por ninguém, são vistos (ou ouvidos, ou fruídos, em sentido geral) ao mesmo tempo. É, portanto, uma simultaneidade em permanentes e múltiplos diferidos.

Nesse sentido, a instalação que a Companhia Maior nos traz é uma poderosa materialização da memória e da forma como esta opera: em repetições, recorrências e contradições, visível sob múltiplos pontos de vista e sempre traduzida, seja por palavras dos seus protagonistas, seja por palavras de outros, ou pelas traições da nossa capacidade de rememoração. Traduttore, traditore, e como a memória funciona, sempre a traduzir, por palavras e por atos, por repetições de gestos e estórias, os mesmos momentos, com os mesmos pais, as mesmas mães, os mesmos tiques e esgares, as mesmas partidas e as mesmas faltas, as mesmas imagens, por vezes poderosas como coisas físicas, que podem mesmo doer no corpo, esse desgraçado sem outro destino senão fingir que é, também ele, espírito. E, por isso, a natureza da memória é sempre fantasmática.

Esta condição fantasmática é, portanto, também física. Algumas pessoas, em resultado da amputação de um membro, sentem (literalmente) sensações, comichões, dores, por vezes de forma insuportável ou excruciante no lugar onde o membro deveria estar – e não está. Esta condição do membro-fantasma é uma poderosa metáfora para podermos pensar a memória como o nosso permanente membro-fantasma, ou, se alguma natureza tivermos, ser ela também natureza-fantasma: como se cura a dor do que já não existe, mas está lá, sob a condição espectral? Sobre os indivíduos, mas também sobre as comunidades: imaginemos as situações traumáticas inerentes à herança colonial, a escravatura, ou a extrema dominação que continuam a produzir efeitos ≪fantasma≫, porque agem a partir de situações que já não existem. Como poderão ser tratados se as situações que lhes estão na origem já não existem faticamente e, portanto, não podem ser corrigidas porque não se pode corrigir o passado? A terapia social para o fantasma colonial não se resolve acabando com o colonialismo porque, em sentido próprio, este já não existe, mas a dor persiste.

A dor persiste, como também a esperança da sua redenção, auspiciosa ou violenta. Ou só insidiosa. Em todos, como em cada um de nós.

Resta-nos agradecer à Companhia Maior o facto de se ter querido reinventar uma vez mais, a Marco Martins, Fernanda Fragateiro e Gonçalo M. Tavares terem imaginado o fantasma e a todos aqueles que fizeram com que este projeto tenha, em tempos em que mais um (ou vários) espectro(s) assola(m) a Europa, sido possível.

Delfim Sardo
Administrador do CCB

O autor escreve segundo o antigo acordo ortográfico

© Companhia Maior