Criar e interpretar na Companhia Maior: memórias de vida, experiências de continuidade e de transformação
Maria José Fazenda (ESD-IPL / CRIA)
Na dança teatral de tradição euro‐americana, a juvenilidade é um cânone. A flexibilidade, a resistência, a virtuosidade, a amplitude de movimentos, a memorização que o treino implicado na aquisição das técnicas corporais extra‐quotidianas desenvolve são características valorizadas nos bailarinos (Fazenda, 2012). Contudo, são vários os artistas que têm, recentemente, vindo a manifestar interesse em trabalhar com intérpretes com idades acima dos 60 anos, uma faixa etária em que os indivíduos experienciam, com a aposentação, um corte com as relações de trabalho e em que as competências físicas tendem a decrescer em função de perdas da capacidade e da função fisiológicas (Coleman, 2013; Paterson & Stathokostas, 2002; Rice & Cunningham 2002).
O trabalho desenvolvido pela Companhia Maior, um grupo profissional cujo elenco tem, na sua maioria, mais de 60 anos de idade, integra este novo cenário artístico. A companhia, vocacionada para as artes performativas — teatro, dança, performance —, foi criada em 2010, e encontra‐se em residência no Centro Cultural de Belém (CCB), uma estrutura de programação e de produção de espetáculos, em Lisboa.
É sobre o trabalho desta companhia que me debruço neste texto.1 Foco‐me em duas das suas dimensões: a da criação e a da interpretação. No que diz respeito à primeira, situamo‐nos no domínio das representações que os criadores transportam para cena; enquanto na segunda, no domínio da experiência vivida pelos intérpretes. Tomo por objeto três das suas primeiras obras, nomeadamente, Bela Adormecida (2010), com texto e encenação de Tiago Rodrigues, Maior (2011), com coreografia de Clara Andermatt, e Estalo Novo (2013), com direção artística de Ana Borralho e João Galante. 2 A escolha destas obras deve‐se essencialmente a duas razões: em primeiro lugar, por estarem entre as que marcam o arranque da companhia, abrangendo as três vertentes performativas da sua atividade — teatro, dança e performance; em segundo lugar, o facto de aqueles criadores se moverem frequentemente entre vários territórios disciplinares, tornando, em alguns momentos do seu percurso, indeléveis as fronteiras entre as várias artes performativas, designadamente as que separam a dança do teatro. Tiago Rodrigues é ator, encenador, dramaturgo, mas já trabalhou em várias produções com bailarinos. Clara Andermatt é bailarina e coreógrafa, mas já colaborou com atores e encenadores. João Galante e Ana Borralho têm trabalhado juntos em dança e em teatro, mas nos seus mais recentes espetáculos, que designam por performances, procuram diluir as fronteiras disciplinares, integrando várias modalidades de expressão — texto, movimento, elementos plásticos. Os próprios intérpretes da Companhia Maior podem ter um percurso na dança, no teatro, na música, ou não ter tido uma atuação em qualquer um destes campos de especialidade.
Há dois conjuntos de questões que me guiaram no trabalho de campo3, na análise e na pesquisa teórica, cada um dos quais dirigido a um grupos de agentes artísticos: aos impulsionadores do projeto e aos criadores, por um lado, e aos intérpretes, por outro. O que é que procuram aqueles criadores, quais são os seus objetivos? Que ideias, experiências e visões do mundo exprimem nos espetáculos? Qual o contexto artístico e social que enforma o seu trabalho? E os intérpretes, o que os motivou a integrar a Companhia Maior? O que experienciam? O que é que este trabalho significa para si? Coincidirão as suas motivações com os propósitos dos criadores?
O trabalho de criadores de faixas etárias mais jovens, como é o caso dos criadores mencionados, com artistas de faixas etárias mais velhas, parece representar, pela maior longevidade e maior acumulação de experiências dos intérpretes, o contexto ideal para se trabalharem temas relacionados com a temporalidade que estrutura a nossa existência humana. A memória que os indivíduos têm da sua experiência e vivência num determinado momento da história política, cultural e social, que aqui designamos, segundo Lambek, por “pratical subjectification of the past” (2003, p. 208), e a memória enquanto função que assegura a repetição dos gestos e inscreve no corpo as suas formas suscitam interesse por parte dos criadores e são tematizadas nos objetos criados. Quanto aos intérpretes, a sua motivação maior para trabalhar na Companhia Maior é a possibilidade de darem continuidade ao seu percurso de vida, retomando projetos ou concretizando desejos que as circunstâncias da sua vida pessoal e profissional os fez adiar ou que a aposentação obrigara a interromper; ou de se abrirem e entregarem a novos desafios, estimulantes ou até transformadores.
A Companhia Maior surge num contexto artístico de valorização artística da maturidade e da expressão da diversidade das experiências corporais, de uma cultura da memória em expansão e de um sistema de organização social em mudança, decorrente de um decréscimo da natalidade e de um aumento da longevidade, propondo e reproduzindo uma conceção positiva das faixas etárias mais velhas4 e dos seus desempenhos artísticos.
O início da Companhia e a poética da memória
A Companhia Maior marca o início da sua atividade pública com o espetáculo Bela Adormecida, estreado no Pequeno Auditório do CCB, no dia 28 de outubro de 2010. O elenco fora definido num workshop, intitulado o nosso tempo é amanhã, dirigido por Tiago Rodrigues, entre 4 e 14 de março desse ano, no CCB, cujo tema se encontrava definido nos seguintes termos:
As memórias e experiências dos participantes serão o ponto de partida para o desenvolvimento de uma proposta artística contemporânea que gira em tomo de temas como os sonhos de infância, a adolescência, o enamoramento, a descoberta da sexualidade e a entrada na idade adulta. 5
No final do workshop é feita uma apresentação pública do trabalho desenvolvido, fazendo‐se coincidir esse momento com o da comunicação à imprensa e à comunidade do surgimento desta nova estrutura de criação. Este workshop foi muito importante porque, por um lado, propiciou o conhecimento mútuo de todas as pessoas envolvidas e o desenvolvimento de cumplicidades e afetos fundamentais ao trabalho da companhia, e, por outro lado, permitiu a Tiago Rodrigues encontrar orientação e matéria‐prima para o texto que escreveria depois para o espetáculo Bela Adormecida. Nas palavras do dramaturgo e encenador:
A ideia deste primeiro workshop foi a de utilizar relatos pessoais, ou seja, um jogo mais confessional por parte de intérpretes, e de perceber como é que eu poderia depois transformar isso no próprio discurso dramatúrgico ou num discurso partilhado, onde eu de alguma forma perseguisse aquilo que me interessava através da voz dos outros. Peguei no batizado, no enamoramento, no casamento, como momento crucial de definição pessoal e profissional, momento em que se decide: “a minha vida vai ser isto”. Interessou‐me explorar não tanto os temas, mas antes a memória desses temas. 6
Depois deste primeiro workshop, que funcionaria ainda como uma audição, seguiram‐se mais três, já com um objetivo de formação nas áreas da dramaturgia, da música e da dança contemporânea. 7 Estes workshops foram frequentados por dezasseis elementos, catorze dos quais acabariam por participar na criação de Bela Adormecida. 8 Após as apresentações no CCB, a companhia fez uma digressão nacional com o espetáculo, tendo o número de locais de apresentação sido muito superior ao inicialmente previsto, atestando o forte interesse das estruturas pelo projeto artístico. 9
Estava assim definido o modelo de temporada da companhia: workshops de formação, começo do trabalho de criação em setembro (com ensaios diários e a tempo inteiro); estreia do espetáculo ainda no último trimestre do ano, e, a seguir, digressão. Este modo de funcionamento, a que acrescem o trabalho remunerado dos performers (mediante contrato), criadores e produtores, e a divulgação adequada, com anúncios, cartazes, comunicações à imprensa dos espetáculos são aspetos que configuram a estrutura profissional do grupo, desde o início.
Em 2011, novos workshops de formação, no campo da música e no âmbito da dança10, abriram as portas à entrada de mais quatro elementos, passando, desde então, a equipa artística a ser constituída por dezoito intérpretes, dezasseis dos quais participariam na segunda produção da companhia11, Maior, com coreografia de Clara Andermatt. O elenco contou ainda com a participação especial de Luna Andermatt, bailarina, professora de dança e fundadora da Companhia Nacional de Bailado12, que, aos 86 anos de idade, aceita o desafio que lhe é lançado pela filha para dançar em Maior, depois de já ter participado, no ano anterior, em Durações de Um Minuto (2010), um espetáculo de Clara Andermatt e Marco Martins (sobre este espetáculo, ver adiante). A coreografia Maior foi estreada a 8 de dezembro, no CCB. No ano seguinte, entre janeiro e maio, a companhia faz uma digressão pelo país. 13
A Companhia Maior possui, desde a sua criação, um Conselho Consultivo “cuja função”, segundo se pode ler no dossiê de apresentação pública do projeto, documento divulgado em 2010, “será a de assegurar uma discussão contínua sobre o funcionamento da companhia, a sua missão artística e o seu impacto, que transborda claramente as fronteiras estritas da criação artística” 14. Assim se torna desde o início explícita a clara consciência dos seus fundadores de que o trabalho que esta companhia desenvolver transportará e reproduzirá socialmente uma determinada perceção das pessoas mais velhas.
Qual a motivação para a criação de uma companhia de artes performativas constituída por intérpretes com idades superiores a 60 anos? Segundo Luísa Taveira, bailarina, professora, diretora artística da Companhia Nacional de Bailado15 e impulsionadora deste projeto singular, no contexto português, também membro da sua direção artística:
A alma do projecto desta companhia, cuja ideia data de 2007 é o aproveitamento da experiência acumulada de artistas provenientes das diversas vertentes das artes performativas. Trata‐se de valorizar a maturidade, os saberes forjados e aperfeiçoados ao longo do tempo e o intenso desejo de comunicar desta fase da vida, em que a reflexão e a ponderação já tiveram mais espaço para vaguear, mais tempo para duvidar, equacionar, concluir… O tempo, a memória e a experiência são elementos‐chave neste projecto de artistas que, em período de balanços e avaliações, se encontram também na fase mais propícia ao estabelecimento de diálogos e entendimentos: entre diversas maneiras de fazer, entre diferentes ofícios, mas também entre tempos e gerações diferentes. São artistas intervenientes a quem a vida não roubou a insatisfação e a curiosidade e, por outro lado, cuja idade já nada tem a ver com oportunismos ou efeitos fáceis. Empenharmo‐nos nesta causa de dar voz à criatividade de uma idade maior não é só um dever. É sobretudo uma janela aberta para um potencial artístico […]16
O primeiro interlocutor de Luísa Taveira foi Tiago Rodrigues 17, inicialmente, de forma informal, quando começaram a conversar sobre o que poderia ser este projeto, em março de 2007, assumindo, depois, a direção artística e a criação do espetáculo inaugural da companhia, Bela Adormecida. A linguagem contemporânea do espetáculo — aos níveis do tratamento do tema, da dramaturgia, da encenação e da interpretação — configura, desde logo, a identidade artística do grupo. Mas, para a construção deste espetáculo inaugural, Tiago Rodrigues não se furta também a trazer para cena temáticas associadas à memória e à passagem do tempo, que não só contribuíram para aproximar os intérpretes entre si, como reforçavam o que se pretendia que fosse um dos aspetos distintivos desta companhia na cena portuguesa, a idade dos intérpretes. Como explica o encenador:
[…] Pensei logo que iria ser um espetáculo sobre o tema idade, da memória, da limitação da idade, do potencial da idade. Seria evasivo se a idade não constituísse o tema deste espetáculo porque é a idade que distingue esta companhia de outro projeto. […] O espetáculo Bela Adormecida pode pois ser visto como uma espécie de portefólio com todo o elenco, de identificação da companhia, da sua dinâmica, de como as pessoas se relacionam. Para mim foi um privilégio criar um espetáculo, tendo em mente a afirmação da identidade de um determinado grupo. 18
A maturidade, o saber acumulado, a memória, a experiência dos intérpretes são não só aspetos valorizados e sublinhados para justificar a relevância deste projeto, como são também artisticamente tematizados em Bela Adormecida.
O dramaturgo e encenador traz para cena um texto que atravessa o imaginário de várias gerações, um ballet que integra elementos das várias disciplinas artísticas — literatura, música, dança —, as quais também estão presentes na sua revisitação deste clássico. Na sua versão, tudo começa com os habitantes do palácio adormecidos; o Príncipe demora muitos anos a encontrar o palácio; quando beija a Princesa e todos acordam, apercebem‐ se que envelheceram. E recordam. O Príncipe recorda através da escrita e a Princesa através da dança. O Príncipe transmite todo o seu conhecimento à Aurora, e, ao transmiti‐lo, perde‐o. A dádiva, a transmissão, o abandono do Príncipe, a continuidade do mundo para além de si e do espaço do seu palácio são, finalmente, o tema central do texto e da encenação.
Segundo Tiago Rodrigues:
Em Bela Adormecida, os simbolismos são subvertidos, analisados ou tomados à letra. A herança é possuída, tentando sempre uma Poética da memória. Uma memória que nos aprisiona ou nos liberta. Mas, inevitavelmente, a memória que é fonte da energia que ilumina o nosso presente. 19
Mais tarde, o interesse pela memória volta a ser ativado pelos criadores Ana Borralho e João Galante na performance Estalo Novo. No processo de criação do espetáculo, são lançadas questões aos intérpretes sobre as memórias de experiências e situações vividas durante o Estado Novo, o 25 de Abril de 1974 e o período de estabilização da democracia. As respostas dadas pelos intérpretes — histórias individuais, visões que cada intérprete tem de si, da sua vida e dos acontecimentos político‐sociais que marcaram o século XX — constituem os materiais a partir dos quais são construídos os textos da peça.
A cultura da memória expande‐se na atualidade (Huyssen, 1995, 2003). Como defende o autor, depois do culto do futuro, no início do século XX, do presente, nos anos 1960 e 1970, “One of the most surprising cultural and political phenomena of recent years has been the emergence of memory as a key cultural and political concern in Western societies” (Huyssen, 2003, p. 11). Segundo o autor, factos históricos como a memória do Holocausto e as suas ressonâncias na atualidade explicariam a preocupação em tornar presente o passado, para que não se repita.
No contexto português, a Revolução de 25 de Abril de 1974, que pôs fim ao Estado Novo, um regime repressivo que imperou durante 41 anos, foi um acontecimento histórico que teve repercussões muito significativas em todas as esferas da sociedade portuguesa — política, social, cultural e também na forma como o corpo é percebido e a relação entre os corpos é experienciada. No final dos anos 1980 e princípios dos anos 1990, no contexto de uma democracia recente, mas estável, e quando o desenvolvimento da dança em Portugal começava a adquirir notável visibilidade, vários coreógrafos fizeram do corpo o locus do seu posicionamento social e político crítico e de algumas das suas obras coreográficas a expressão reflexiva da experiência dos corpos oprimidos pela vigilância, pelo controlo e pela repressão, durante o Estado Novo (Fazenda, 1997, 2014; Lepecki, 1998).
O quadragésimo aniversário da Revolução dos Cravos tem sido assinalado com uma série de eventos oficiais, ecoando ainda em manifestações da sociedade civil e em práticas de cultura expressiva. A evocação deste acontecimento histórico, que abriu as portas a grandes transformações na sociedade portuguesa, torna‐se particularmente relevante no momento atual, quando os portugueses vivem momentos de dificuldade e incerteza na sequência da crise económica que deflagrou em 2011 e do plano de austeridade exigido pela Troika e implementado pelo Governo. É neste contexto que melhor se entende a pertinência de “Estalo Novo”, um espetáculo cujo objetivo “é refletir sobre a história de um país e sobre a história dos corpos que nele habitam, e sobre o regime em que atualmente vivemos” 20. Recorrendo à voz ou à inscrição em cartazes, os intérpretes partilham, com humor, slogans que identificam valores e ideologias e histórias de constrangimentos, perseguições, restrições à expressão e censura política vividos durante o Estado Novo — para que não se repitam —; e refletem sobre as devastadoras consequências do programa político de austeridade instalado no Portugal de hoje — para que nos mantenhamos atentos.
A Companhia Maior na cena performativa atual
Neste contexto de valorização da tomada de consciência do passado e da forma como os acontecimentos históricos podem ecoar no presente, os intérpretes mais velhos são também vistos como um repositório precioso de experiências de vida e de memórias que se cruzam com acontecimentos históricos e sociais dignos se serem reavivados e transmitidos, e, consequentemente, possuidores de uma maturidade associada a uma sabedoria, digna de ser revelada. A forma como experienciam a passagem do tempo e o envelhecimento também suscita a atenção dos criadores mais novos. No campo das artes performativas, estes interesses não se reduzem às dimensões percetivas e cognitivas das experiências, mas estendem‐se às experiências corporais dos sujeitos, pois a nossa experiência é também, e antes de mais, uma experiência corporal. Como defende Turner (1995), “our experience of our own time is phenomenologically bound up with being embodied” (p. 253).
Com efeito, a memória, a experiência de vida, a maturidade, a experiência do envelhecimento e da passagem do tempo são tematizadas em várias criações feitas nos últimos anos no contexto da dança teatral. São exemplares as obras Kontakthof Mit Damen und Herren ab „65“ (2000), de Pina Bausch, …Du Printemps! (2011), de Thierry Thieû Niang, Natural (2005), de Clara Andermatt, para a Company of Elders , e Durações de Um Minuto (2010), de Clara Andermatt e Marco Martins.
A importância atribuída à maior experiência de vida e à maturidade das pessoas mais velhas é o que motiva a coreógrafa alemã Pina Bausch a remontar Konthakthof com intérpretes com mais de 65 anos, uma obra sobre a sedução e a dificuldade de comunicação entre os géneros feminino e masculino, originalmente criada em 1978 com os bailarinos da sua companhia, o Tanztheater Wuppertal.
My wish, to see this Piece, this Theme shown by Ladies and Gentlemen with more Life experience grew with time even stronger. So I found the courage, to give Konthakthof to elderly people over ‘65’. People from Wuppertal. Neither Actors. Nor Dancers. In February 2000 we were ready. (Bausch, 2007)
Mais recentemente, Thierry Thieû Niang, bailarino e coreógrafo francês, que tanto trabalha com bailarinos profissionais como com crianças e adultos amadores, estreia …Du Printemps! (2011). O espetáculo nasce a partir de uma série de ateliês que o criador orienta durante um ano com homens e mulheres com idades compreendidas entre os 60 e os quase 90 anos, abordando questões sobre as experiências de vida, historicamente situadas, a memória e o envelhecimento. Em algumas das sessões, o coreógrafo abordou com os participantes temas relacionados com a história da dança. A decisão de trabalharem sobre Le Sacre du Printemps, de Igor Stravinsky, resulta de uma escolha dos próprios participantes. Os temas coreográficos predominantes, como o círculo, a espiral, percursos espaciais traçados a andar ou a correr, sugerem a marcha do tempo, mas a de um tempo cíclico, o que estabelece um continuum entre gerações, que liga eternamente os seres humanos uns aos outros. Estes materiais coreográficos — a marcha, a corrida, o círculo —, que tornam esta peça distintiva, têm também origem nas improvisações coreográficas realizadas pelos intérpretes, como explica o coreógrafo:
Au départ, il s’agissait d’un atelier, autour du temps et de l’art. Comment ces gens avaient‐ils traversé l’histoire des arts et l’histoire mondiale ? […] Nous avons évoqué les ballets russes, avons écouté Le Sacre du Printemps. Un homme de 69 ans qui faisait des marathons s’est mis à cavaler sur le plateau. Un mouvement spontané du groupe autour de la question du cercle, et du temps qui passe, a pris forme. (Niang, 2012)
A experiência da passagem do tempo é também o ponto de partida para a criação de Natural (2005), a peça assinada pela coreógrafa portuguesa Clara Andermatt para a Company of Elders — um grupo de dança e de performance constituído por pessoas com idades acima dos 60 anos, sediado no Teatro Sadler’s Wells, em Londres —, anos antes do desafio que lhe é lançado para trabalhar com a Companhia Maior. Em Natural, a coreógrafa trabalha com 16 intérpretes, a partir de temas relacionados com as suas experiências, a altura específica das suas vidas e sobre o que na sua perspetiva seriam os pontos positivos e negativos do envelhecimento. Durante o período de duas semanas de residência, a coreógrafa faz uma criação a partir destas entrevistas, recorrendo a técnicas teatrais e de improvisação, e de um trabalho de desenvolvimento da perceção sensorial e corporal dos intérpretes, colocando‐os em contacto físico uns com os outros.
Clara Andermatt sempre se interessou por trabalhar com diversos grupos de pessoas, pelo que este trabalho com a Company of Elders, apesar de representar a sua primeira experiência com intérpretes mais velhos, era algo que não se afastava dos seus interesses. Como a própria explica:
[…] Ao longo da minha carreira, tenho tido a oportunidade […] de trabalhar com uma multiplicidade de alunos, intérpretes e colaboradores, de diferentes naturezas, quero com isto dizer de diferentes culturas, meios sociais, idades, formações e áreas artísticas. Aceitar este convite, para trabalhar com um grupo de pessoas com mais de 60 anos, vem naturalmente na sequência do que acredito ser mais uma experiência enriquecedora e desafiante.” (Andermatt, 2004)
Num espetáculo que cria posteriormente, com Marco Martins, Durações de Um Minuto (2010), e com intérpretes com idades compreendidas entre os 24 e os 86 anos, Andermatt volta a interessar‐se pela forma como as pessoas de várias gerações se relacionam com o tempo e a memória, estimulando‐as, no processo de criação, a convocar as suas experiências e outros elementos biográficos.
Deste espetáculo, convoco os desenhos espaciais dos braços, de contornos incertos, que Luna Andermatt, intérprete que voltaríamos a ver em Maior, realiza sobretudo com a parte superior do corpo, aquela em que tinha maior mobilidade, convocando as memórias inscritas no seu corpo de quando dançara O Pássaro do Fogo. E se as mudanças fisiológicas e biológicas decorrentes da passagem do tempo a impediam de desenhar as formas virtuosas que antes o seu corpo executava, Luna Andermattt parece aqui não só recorrer ao conhecimento interiorizado “do como se faz”, mas também, após um processo de pesquisa e criação, ter encontrado outros movimentos para projetar as imagens do voo e da leveza. Neste novo contexto de trabalho, Luna Andermatt envolve‐se numa nova pesquisa de movimento com vista a enriquecer a sua interpretação que surpreendeu a própria filha, Clara Andermatt:
Em Durações de Um Minuto, eu e o Marco também trabalhámos muito sobre a experiência, a memória. Há um livro que foi aconselhado pelo Gonçalo M. Tavares, creio eu, que é Porque é que a Vida Acelera à Medida que se Envelhece, que serviu de base para perceber os mecanismos cerebrais em relação a essa evolução do tempo e da memória […] E depois há as memórias corporais. Nesse sentido, é muito engraçado ver como a minha mãe tem uma memória física, que também passa pelo corpo, mas depois o corpo já não responde. Há essa beleza de uma coisa que está impressa no corpo de uma ex‐bailarina, mas que agora ela já não pode fazer; e que ao mesmo tempo ainda tenta fazer. Mas aquilo que é incrível nela, e que ao mesmo tempo foi surpreendente para mim, uma vez que eu também nunca a tinha visto dançar, pois eu era muito nova quando ela deixou de dançar, é a maneira como ela vai fazendo as suas pesquisas sobre as coisas que vamos pedindo, procurando ingredientes para se alimentar, em revistas, fotografias ou na Internet, com a ajuda do meu pai; mantendo uma atitude de criação. 21
Novos corpos em cena: contexto, ideias e práticas
O trabalho performativo realizado com pessoas de faixas etárias mais velhas é um dado relativamente recente no contexto das artes performativas ocidentais. Na dança teatral ocidental, a juvenilidade e o virtuosismo são valorizados e promovidos. As técnicas corporais (Mauss, 1983 /1936) e as disposições que os habitus da dança teatral produzem, ou seja, os “modos de percepção, de apreciação e de acção” (Bourdieu, 1998 /1997, p. 124), designadamente os da dança clássica e os da dança moderna (Fazenda, 2012), enfatizam a força, a agilidade e os movimentos atléticos. Como afirma Berson (2010), “Conventional dance productions often depend on the energetic and virtuosic movements of performers, who dazzle audiences with leaps and turns, and the muscular displays of youthful, finely honed bodies that can seem to bear little relation to our own” (p. 166).
Contudo, muitos bailarinos têm encontrado formas e contextos para dançar até muito tarde (Early, 2013; Kastenbaum, 2000; Manko, 2008). Distinguem‐se, essencialmente, duas situações: ou em companhias, como o Nederlands Dans Theater III, criado por iniciativa de Jiří Kylián, para bailarinos com cerca de 40 anos de idade ou mais, que funcionou entre 1991 e 2006; ou por poder próprio, como a bailarina e coreógrafa Martha Graham que dançou até aos 76 anos ou o bailarino e coreógrafo Merce Cunningham que dançou até depois dos 80 de idade. Performers como estes, que continuam a dançar, “thereby demonstrating the skills of age rather than skills of extreme physicality” (Dickinson, 2010, p. 198), são casos pontuais frequentemente associados ao capital simbólico (autoridade, prestígio artístico) adquirido pelos próprios e ao culto dos artistas e personalidades notáveis.
Por seu lado, o Nederlands Dans Theater III foi um projeto singular no contexto da dança de valorização da experiência e da maturidade dos bailarinos, fatores que acrescentam valor às interpretações de determinados papéis na dança, inclusivamente na dança clássica — como Odete/Odile em O Lago dos Cisnes, ou A Morte dos Cisne, entre outros exemplos. Como refere Early (2013):
But if we ask more of our dancers than physical perfection and a cloned beauty there are other qualities we might value: qualities associated more with experience, wisdom, an older age. What could we expect from older dancers? Perhaps economy, precision, emotional accuracy, relaxed humour, developed stagecraft, a vision of a healthful older age. (p. 64)
Mas estes casos encontram‐se entre as exceções, devidamente enquadradas no mundo artístico em causa, que justificam o carácter extraordinário das técnicas da dança teatral no contexto ocidental.
O que defendo é que o trabalho com intérpretes mais velhos, de que os espetáculos atrás referidos são paradigmáticos, não só desafia o idadismo do mundo da dança teatral ocidental, como é a expressão de duas alterações significativas e concomitantes, na forma de percecionar e representar o corpo, a idade e o envelhecimento, nos campos artístico e social.
No campo artístico, teremos de recuar aos anos 1950‐60, aos Estados Unidos da América, para compreendermos as alterações que então ocorreram na forma de percecionar o corpo do intérprete no contexto da dança ocidental, quando começamos a assistir a um inequívoco interesse pela diversidade dos performers, por aquilo que os seus corpos são, independentemente das suas competências técnicas formais. Anna Halprin e os membros que integraram o Judson Dance Theater (1962‐64), como Yvonne Rainer e Steve Paxton, reequacionam não só o vocabulário necessário para se definir a dança, como também a formação necessária para se definir o intérprete de dança, com consequências na própria conceção de arte, agora mais democratizada e acessível. Nesta época, a dança, quer pelos intérpretes que a realizavam (para além de bailarinos, também pessoas comuns sem treino formal em dança), quer pelos movimentos que estes executavam (movimentos convencionais da dança combinados com gestos banais), incorporava e atualizava novos ideais de participação dos indivíduos nas atividades artísticas, mais abrangentes e antielitistas, e, demarcando‐se da excecionalidade tradicionalmente associada ao artista, às suas práticas e à obra de arte, estabelecia um novo modo de aproximação da arte à vida (Fazenda, 2012).
Anna Halprin foi uma importante influência para os então jovens bailarinos que, numa atmosfera cooperativa e sem líderes, estavam a apresentar os seus trabalhos na Judson Church, em Nova Iorque22, alguns dos quais tinham participado no Dancer’s Workshop, um grupo multidisciplinar que Halprin coordenava em São Francisco, nos anos 1950, e onde desenvolvia um conjunto de novas práticas que os influenciará de forma determinante, designadamente o uso da improvisação e a realização de ações comuns — os task oriented movements23 — práticas integradas, desde então, nas convenções e modos de operar no campo da criação coreográfica.
Nos anos 1970, Halprin usa a dança para a ajudar a recuperar de um cancro. A partir daí, arte, entretenimento e ritual tornam‐se indissociavelmente ligadas, no seu trabalho. 24 Paralelamente, Halprin cria, a partir de 1978, com a sua filha Daria Halprin, o Tamalpa Life/Art Process, uma influente escola de dança e de movimento com uma orientação terapêutica baseada na premissa de que a dança e o movimento criativo são intrínsecos a toda a vida, independentemente de géneros ou faixas etárias, e fundamentais no processo de manutenção ou restabelecimento do equilíbrio vital. 25
Halprin, “a lifelong dancer”, como se identifica a si própria (1984, p. vii), continua, depois dos 90 de idade, a influenciar a comunidade artística. Vissicaro (2013) sintetiza de forma justa essa influência:
What Halprin brings to the world is an understanding that each person encounters a given context with his or her unique ‘body’ of history or repository of information. The inherent capacity humans have to tap into their embodied knowledge informs how, why, where, when and with what or whom we move. […] People’s life experiences are the source for artistic experience. (p. 23)
A experiência da vida como fonte para a experiência da dança, a que se refere Vissicaro, é a permissiva essencial que tem guiado Halprin a romper com os limites ao nível de competências técnicas, de estrutura corporal e de idade estabelecidos pelas convenções da dança teatral euro‐americana (especificamente no ballet e na modern dance) para o envolvimento dos indivíduos na prática da dança. 26
Concomitantemente a estas alterações radicais no campo da dança teatral que abrem esta prática à participação de corpos com competências técnicas e idades diversas, expandindo‐se e afetando a cultura coreográfica na Europa, assiste‐se, no campo social e das mentalidades, a uma transformação fundamental da visão sobre o envelhecimento. Enquanto que o envelhecimento, a partir do século XIX, nas sociedades ocidentais, era encarado como um processo inexorável de perdas contínuas, hoje prevalece a perceção de que o envelhecimento é um processo de mudanças fisiológicas e biológicas suscetível de proporcionar novas adaptações do corpo e transformações da pessoa (Debert, 2004/1999; Hepworth, 2003; Phillipson, 1998; Turner, 1996). Esta alteração na forma de percecionar os mais velhos na sociedade deve‐se, em grande parte, a conquistas importantes, como a aposentação, e ao aumento da longevidade na Europa e nos Estados Unidos da América (Amans, 2013b; Carneiro, 2012; Lima, 2010a, a 2010b; National Research Council, 2001; Peace, Dittmann‐Kohli, Westerhof & Bond, 2007). O avanço da idade pode então ser encarado como uma oportunidade de dar continuidade a atividades já realizadas ou de concretizar novos projetos.
No contexto social e artístico atual, o trabalho realizado pela Companhia Maior reforça as representações positivas das várias etapas da vida e contribui para difundir a ideia de que em todas elas é possível dar continuidade a projetos interrompidos ou realizar novas conquistas. Estas são ideias que presidem à fundação da Companhia Maior e ao seu trabalho, desde o primeiro workshop com Tiago Rodrigues, o nosso tempo é amanhã, e são tematizadas nas obras criadas, como Maior, de Clara Andermatt.
Em Maior, a coreógrafa distancia‐se da temática diretamente associada à experiência de vida dos intérpretes, que a tinha guiado nas obras anteriores que tratámos atrás, e, sem negligenciar as suas particularidades e percursos artísticos, centra‐se nas potencialidades expressivas da escrita coreográfica. Nesta coreografia, o adjetivo “maior” foi o mote para a construção do movimento. Andermatt parte de memórias corporais, sedimentadas nos gestos banais, nas ações realizadas quotidianamente e das sensações a eles associados — lavar os dentes, vestir um casaco, colocar as mãos nos bolsos, fazer a barba, colocar maquilhagem, fumar um cigarro, etc. A coreógrafa solicitou aos intérpretes que se consciencializassem destes gestos incorporados e os reproduzissem com todas as suas qualidades inerentes — amplitude, espacialidade, energia —, no estúdio, fora do contexto em que eles são geralmente realizadas. Os materiais obtidos constituíram a substância de base para a construção da coreografia. Os movimentos foram exagerados, agigantados, intensificados, a partir de vários mecanismos de composição coreográfica. A deslocação e a transformação dos movimentos quotidianos permitiram a Andermatt construir uma obra de uma atmosfera fantasiosa, etérea, de uma luminosidade branca intensa e de uma sonoridade celestial 27 , sugerindo, assim, a projeção da vida de cada um destes intérpretes no futuro.
Experiências de continuidade e de transformação
Entre as principais motivações dos intérpretes da Companhia Maior para terem integrado este projeto encontram‐se a vontade de realizar novas conquistas, o desejo de continuar projetos interrompidos, o empenho em concretizar atividades desejadas mas nunca antes realizadas, a busca de prazer e satisfação social e a continuidade de aprendizagens. Como explica a intérprete Celeste Melo:
Desde a infância que, através do meu avô materno, tomei contacto com o Teatro. […] Já com cerca de 17 anos concretizei parte de sonho que me acompanhava ‐ comunicar partilhando emoções, magia, imaginação ‐ ao integrar o Grupo Cénico do Clube Atlético de Queluz, local onde vivia. […] A minha vida adulta implicou o meu afastamento de atividades ligadas ao Teatro, tempo que sempre me pareceu demasiado longo. No entanto, permaneceu a vontade, a energia e a necessidade do estímulo que sempre senti que o Teatro exige. Por isso, quando a minha vida de novo o permitiu, voltei. Porque considero que “o meu tempo é amanhã”, mas também foi “ontem” e é “hoje”[…].28
O interesse de Tiago Rodrigues em trabalhar, no workshop inicial do projeto, sobre temas relacionados com a memória dos participantes, terá sido apelativo para uma das candidatas, Iva Delgado, o que se deveu sobretudo ao facto de este tema ser afim ao das atividades a que a própria se dedicava na Fundação Humberto Delgado29 e de que então era presidente:
Tenho um projeto que se intitula “Direito à Memória” cujo público‐alvo são alunos de quatorze, quinze anos. De um modo geral […] “represento” curtas narrativas de episódios ou por mim vividos ou em segunda mão, intitulados “Histórias óbvias da Ditadura”. Sinto que aprenderia muito com a experiência de pessoas do teatro. 30
Mais tarde, já em atividade na Companhia Maior, Iva Delgado reitera a sua motivação principal para se ter candidatado ao workshop, mas admite que pôs termo à sua pesquisa histórica para se poder dedicar a este novo projeto, a Companhia Maior:
Ouvi na Antena 2 uma entrevista do Tiago Rodrigues sobre a Companhia Maior e ele disse umas coisas relacionadas com a memória e a experiência das pessoas de mais idade que me fizeram colar o ouvido à rádio. […] Pus um ponto final na investigação histórica, na escrita de livros, na preocupação em deixar discípulos, em não deixar a fundação. Encerrei esse mundo, agora. […] A Companhia Maior, agora, é o meu oásis. 31
Tal como para Iva Delgado, o fator idade foi, para muitos outros, um estímulo. Apesar de os intérpretes da Companhia Maior terem idades muito variáveis, entre os 60 e os 80 anos de idade, a definição “acima dos 60” 32 não deixa de ser vista pelos próprios como um princípio organizador positivo, como alguns admitiram quando se inscreveram no workshop inicial, o nosso tempo é amanhã. Júlia Guerra valoriza o facto de este trabalho “contemplar uma faixa etária habitualmente não considerada pela nossa sociedade” e Cristina Gonçalves sentiu‐se “aliciada” pelo projeto pelo “facto de os participantes terem mais de 60 anos (é raro, nestes contextos, estar entre pares)”.
Se a idade, as circunstâncias decorrentes da aposentação e da própria vida familiar favorecem a participação destas pessoas na Companhia Maior, isto por si não é ainda suficiente para explicar não só a chegada ao projeto, como a sua adesão, unânime, entusiasta, empenhada — mas nem por isso menos crítica — a uma atividade extremamente exigente do ponto de vista profissional, essencialmente dirigida por artistas mais jovens e com um trabalho contemporâneo. Para compreender as presentes circunstâncias da vivência destas pessoas é importante, alertada pela leitura de Arber, Davidson, & Ginn (2003), atender aos papéis que desempenharam anteriormente, às posições sociais, económicas e de acesso à cultura antecedentes, não só delas, mas dos seus familiares.
Júlia Guerra, por exemplo, ao explicar como teve conhecimento do projeto e por que razão se interessou por ele, realça que o seu interesse pelo teatro não será alheio ao facto de o seu pai ter sido ator:
Vi na programação do CCB, que ia haver um workshop de teatro para maiores de 60 anos. E pensei: Olha, que coisa tão interessante! Já tinha feito, aqui há tempos, um workshop de dança contemporânea, um workshop de fotografia, outro de poesia. O meu pai tinha sido ator de teatro, tinha feito o Conservatório. A minha casa era muito apelativa para uma criança, por causa das fotografias do meu pai, maquilhando‐se. […] Eu sentia um grande apelo pelo teatro, mas era muito tímida […] acresce que o meu pai sempre me incutiu o gosto pelo teatro. 33
O apoio e o estímulo dos filhos é também um aspeto mencionado por alguns dos intérpretes como um impulso importante para se terem inscrito neste projeto, como Carlos Nery, António Pedrosa ou Celeste Melo:
A minha filha recebia por Internet a informação do CCB, e recebeu em casa dela a comunicação de que ia haver aquele workshop sobre teatro. Sabendo do meu interesse pelo teatro, fez‐me o forward daquela comunicação. E é claro que eu estava interessado, pois fiz teatro em várias ocasiões […]34
Tomei conhecimento do workshop que ia ser promovido pelo Tiago através de uma publicação do Teatro Maria Matos. Coincidentemente, o meu filho mais velho, o Jorge, também soube disso e acicatou‐me, porque ele sabia do meu interesse pelo teatro. Eu tinha participado no Teatro da Caixa, que era uma companhia de amadores, com o Jorge Listopad, ainda antes do 25 de Abril, e depois ainda trabalhei com o Rogério de Carvalho […]35
Foi por um acaso que soube. Estava a dar assistência à minha neta, que estava com varicela, e vi num jornal o anúncio do workshop. E pensei: Isto deve ser bem interessante! A minha filha chegou, eu falei‐lhe e ela disse‐me: Ó mãe, porque é que não se inscreve?”. E eu disse: “Ó filha, mas eu não tenho currículo.” E ela respondeu‐me: “Mas com certeza que tem, então a mãe teve experiência de teatro, cantou num coro, tem formação musical.” E dançar, sempre gostei de dançar; e naquela altura até estava a ter aulas de dança contemporânea. […] A minha filha ajudou‐me a escrever o cv, enviou‐o, e, passado uns dias, não muitos, recebi um telefonema, comunicando‐me que eu tinha sido admitida ao workshop. E aí começou um tempo maravilhoso para mim, é claro. 36
Uma grande maioria dos intérpretes que integra a Companhia Maior teve experiências anteriores no teatro, na dança ou na música, como profissionais ou como amadores, pelo que valorizam o facto de esta companhia lhes proporcionar a possibilidade de dar continuidade37 ao seu projeto de vida, sobretudo numa área que, por razões várias, de ordem profissional ou familiar, tiveram, em determinado das suas vidas, de abdicar. Nestes casos, o trabalho com a Companhia Maior é pois vivido como uma experiência muito gratificante e positiva, como reforça Carlos Nery:
Eu acho que o facto de poder, nesta altura da minha vida, fazer uma coisa de que gosto muito, é algo muito, muito entusiasmante. Se não fosse esta oportunidade, o que é que eu estaria agora a fazer? Bem, estaria em casa, lendo, vendo televisão, tratando dos meus netos. Seria muito mais restrito. E cada vez mais restrito, à medida que a idade fosse avançando, não é? Esta oportunidade foi uma mudança decisiva na minha vida. E isto está a acontecer quando uma pessoa tem a noção de que está já no seu ocaso, que se aproxima dos 80 anos. Finalmente, estou a fazer o que gosto. Trabalhei no Banco de Portugal, que não foi uma experiência por aí além empolgante, embora seja dali que eu vou buscar a reforma que me dá para viver. Tive cinco ou seis anos de serviço militar obrigatório; fui chamado duas vezes para a tropa; tive de fazer uma guerra com a qual não concordava [na Guiné, em 1968‐ 70]. Foi uma experiência dura, no Sul da Guiné […] Era Capitão, Comandante de Companhia. Mas, quer dizer, num tempo em que as pessoas acabavam por fazer sobretudo coisas de que não gostavam… Embora eu, sempre que arranjei pretextos, fiz teatro, quer […] no CITAC, na Guilherme Cossul, no Primeiro Acto, em Algés… Tudo isto antes do 25 de abril. […] Agora, emagreci dez quilos e acho que fisicamente melhorei muito, alivia muito o coração e dá‐me outra mobilidade no palco. 38
Tal como Carlos Nery, há outras pessoas que sentem que o trabalho na Companhia Maior representa uma alternativa benéfica à rotina pouco desafiante a que a sua vida se podia ter restringido após a aposentação, como exprimem Vítor Lopes ou Paula Bárcia:
Não faz parte de mim, na qualidade de reformado, ir para o jardim jogar às cartas; ir três ou quatro vezes aos anos dos netos; e na noite de Natal estar com as filhas. Isso para mim não chega. Tem de haver mais coisas. E acho que a sociedade está também a descobrir que o velho — essa coisa como me chamam algumas pessoas — já não está só circunscrito à Alameda Afonso Henriques ou ao Jardim da Estrela39, ao jogo das cartas, ao tabaco ou ao álcool. 40
Há […] as amizades que eu descobri na vida; desafios extraordinários de resiliência, de fuga à rotina, em que uma pessoa está a aprender coisas todos os dias. É extremamente enriquecedor. E isto marca. 41
Para a bailarina Kimberley Ribeiro, a chegada à Companhia Maior representou também a possibilidade de retomar de uma atividade que a aposentação interrompera: “tendo em conta a minha anterior experiência, achei que tinha a ver com aquele projeto”, admitiu com naturalidade. 42
De todo o grupo inicial, Michel é o único dos intérpretes para quem a atividade na Companhia Maior representa, a nível profissional, uma mudança na continuidade, na medida em que ele nunca interrompera a sua atividade como performer — músico e bailarino de sapateado.
Luísa Taveira telefonou‐me para me informar pessoalmente do projeto, que me agradou por ser algo contemporâneo, atual, uma criação em função de nós. E foi assim que fiquei estimulado. De início, interessou‐me muito o workshop porque eu sou um profissional e achei que essa experiência seria muito boa para mim. Bem, depois formou‐se a companhia e acabei por ficar na companhia, o que foi bom. 43
Foi Michel quem introduziu o sapateado em Portugal, em 1980, contribuindo, não só enquanto bailarino, mas também como professor, para a divulgação deste estilo de dança no país. O facto de Michel não ter interrompido a sua atividade como bailarino é uma escolha individual, mas que poderá também explicar‐se por a forma de dança a que se dedica ser menos idadista do que outros géneros de dança, como o ballet ou a modern dance, como defende Oliver (2010): “Tap is distinguished from those other forms because its physical demands and aesthetic qualities discriminate less against older performers” (p. 209). A autora fundamenta a sua posição após uma análise da técnica do sapateado e dos seus padrões estéticos em que atende às raízes desta forma de expressão na dança afro‐americana, a qual, por sua vez, se desenvolveu a partir de formas de dança africana, menos discriminatórias em relação à idade do o ballet ou a modern dance.
Contrariamente a Michel, Elisa Worm outra performer da Companhia Maior que fora bailarina e professora de ballet, interrompeu a sua atividade profissional nestas áreas mais cedo. A sua chegada à Companhia Maior representa não só a possibilidade de retomar uma atividade entretanto interrompida, mas também a de viver novas experiências como bailarina, algumas das quais transformadoras relativamente às competências que tinha adquirido como profissional. Elisa Worm, conta, com satisfação e entusiasmo, como descobriu, com a Clara Andermatt, novas formas de trabalho como bailarina, com o seu corpo, quando a coreógrafa lhe pede que improvise um solo:
Pensando no meu percurso, foi interessante e muito importante para mim, e a Clara Andermatt nem sonha… mas o facto de ela me ter pedido para improvisar um solo foi interessante porque eu descobri coisas em mim. A minha carreira como bailarina profissional foi até um John Butler, um Lar Lubovitch; esteticamente, cheguei até Martha Graham, Alwin Nikolais, Murray Louis. Portanto, eu, como bailarina, parei aí; a memória do meu corpo ficou aí. Quando a Clara me pediu para eu fazer uma improvisação, evidentemente, pensei: isto é uma oportunidade única para saber se eu, enquanto diretora artística e coreógrafa, tinha aprendido alguma coisa com os bailarinos mais recentes, como é que os bailarinos mais recentes se movem e se eu sou capaz de sentir o mesmo que os bailarinos mais recentes sentem. […] Isto foi muito importante para a minha realização. […] uma das coisas que para mim sempre foi muito importante foi saber que estive sempre viva para aprender. 44
Para além de Elisa Worm, há outros intérpretes que destacam o facto de o trabalho com a Companhia Maior lhes ter proporcionado experiências de transformação, na forma como se veem a si próprios e na sua relação com os outros. Paula Bárcia fala da descoberta de capacidades que antes não tinha explorado: “Sinto‐me um bocadinho surpresa comigo mesmo, com a capacidade de memorizar texto, com as respostas físicas que damos, com as coisas que fazemos, e não só eu, mas muitos de nós […]”45 . Júlia Guerra refere que a grande transformação que a Companhia Maior operou em si foi a de ter dado “um outro sentido à minha vida […],preencheu uma parte muito carente da minha vida, uma parte afetiva da minha vida foi toda imbuída desta magia” 46 . Iva Delgado sublinha que o trabalho com a Companhia Maior alterou a forma como ela via a relação de si com os outros, no trabalho em grupo:
[…] Eu normalmente nem sou uma pessoa muito virada para grupos, sou mais individualista, isolo‐me. […] Para já [o trabalho na Companhia Maior deu‐me] a consciência de grupo, que era uma coisa que eu não tinha. Nunca pertencia a grupo nenhum; fiz sempre uma vida isolada. E nas escolas, como o meu pai viajava muito, nunca repeti um ano numa escola; frequentei catorze escolas; de maneira que nunca tive a experiência de estar integrada num conjunto de pessoas. 47
Segundo os intérpretes, a possibilidade de viverem experiências de continuidade e de transformação estão entre os ganhos mais importante do seu trabalho com a Companhia Maior. Outro aspeto muito importante é o desenvolvimento das novas sociabilidades que a criação da Companhia Maior promoveu, visível não só na forma cúmplice e cooperante como os intérpretes trabalham no estúdio, mas também pelas interações e afetos que desenvolveram uns com os outros fora do contexto dos ensaios. Tiago Rodrigues teve um papel preponderante, deste o início, no incremento destes novos encontros e relações. Quando reuniu pela primeira vez o grupo, no workshop o nosso tempo é amanhã, uma das suas principais preocupações foi a de criar uma relação positiva, aberta e de confiança entre todos os participantes, como referimos no início deste texto. Os intérpretes reconhecem a qualidade e a competência profissional de Tiago Rodrigues por o ter conseguido fazer. Nas palavra de Iva Delgado:
O Tiago, no primeiro workshop, fez uma coisa que normalmente é perigosa que é por as pessoas a falarem de si próprias perante um grupo de pessoas que não conhecem. Em princípio, isso podia ser uma coisa estranha que levasse as pessoas a retraírem‐se, mas não, toda a gente identificou‐se, disse ao que vinha, porque é que estava ali. Essa primeira sessão foi muito agradável, houve logo empatia. Toda a gente falou com o coração nas mãos. […] Naquele dia, sem rede, sem nada, atirou‐ nos para os braços uns dos outros; ficámos todos com imensa curiosidade e consideração pelas pessoas que estavam no grupo. Formou‐se logo ali um gostar. 48
No caso dos intérpretes da Companhia Maior, a idade, as vivências e experiências sociais, políticas e culturais afins são geradores de cumplicidades e são sentidas como princípios organizadores positivos. Mas, como também procurámos destacar, estes fatores de identificação não são totalizadores nem homogeneizadores. Atendendo às suas biografias, sobressaem os sinais de diferença, na forma como cada um tem negociado o seu percurso de vida, à semelhança do que, debruçando‐se sobre outros contextos e práticas, Blaikie (1999) e Pilcher (1995) defenderam.
É também a individualidade dos intérpretes que, finalmente, cada um dos criadores destaca nas obras criadas. Ainda que em alguns dos espetáculos criados, os criadores procurem explorar temas que eles associam ao conhecimento adquirido e às vivências específicas, nas esferas sociais e políticas, de uma determinada geração, confirmando a posição de Turner (1995), segundo a qual “certain generations have collective memories which are radically different from other generations (p.255), as metodologias artísticas que aqueles artistas adotam — improvisações que convocam memórias individuais, como aconteceu no processo de criação de Estalo Novo, ou composições que integram materiais criados pelos intérpretes, como em Maior, ou produções cujos temas são suscitados por eles, como Bela Adormecida — promovem o reconhecimento da diferença e da individualidade, não só da história e do percursos vividos, mas da forma como cada um deles se vê e age no presente.
1 Agradeço aos criadores, ensaiadores, fundadores, diretores artísticos, intérpretes e produtores da Companhia Maior a confiança que depositaram em mim, a sua disponibilidade e imensa generosidade, em especial a Ana Borralho, Ana Diaz, António Pedrosa, Bruno Simão, Carlos Nery, Clara Andermatt, Celeste Melo, Cláudia Gaiolas, Cláudia Varejão, Cristina Gonçalves, Diana Coelho, Eduardo Sérgio, Elisa Worm, Gabriela Cerqueira, Helena Marchand, Isabel Millet, Isabel Simões, Iva Delgado, João Galante, Jorge Falé, Júlia Guerra, Kimberley Ribeiro, Luísa Taveira, Luís Moreira, Luna Andermatt, Manuela de Sousa Rama, Magda Bizarro, Michel, Paula Bárcia, Tiago Rodrigues, Vítor Lopes e Vítor Rua. Agradeço ao Centro Cultural de Belém, o acolhimento.
2Uso os nomes reais de todos os artistas — autores e intérpretes —, prestando assim tributo quer ao trabalho artístico que realizam quer ao status público que é inerente à sua atividade.
3 Acompanhei o trabalho da Companhia desde o seu início, mas é a partir de janeiro de 2011 que início o trabalho de campo, observando e participando em várias aulas, assistindo a ensaios de criação, conversando com criadores e intérpretes.
4 No sentido literal, as expressões “faixas etárias mais velhas” e “intérpretes mais velhos” referem‐ se ou a alguém mais velho do que a pessoa que as usa ou tendo‐se em consideração o que num determinado país se encontra legalmente estatuído. Existem ainda outros termos, como “terceira idade” ou “acima de…”, também frequentemente usados em função do contexto relacional ou institucional (Amans, 2013a). No âmbito deste texto, usamos as expressões “faixas etárias mais velhas” e “pessoas mais velhas” para nos referirmos aos intérpretes de faixas etárias acima dos 40‐50 anos de idade — as faixas etárias comummente admitidas como limite para uma grande maioria de bailarinos profissionais poderem dançar no contexto da dança teatral de tradição euro‐ americana — e acima dos 60, altura em que muitas pessoas se aposentam e vivem transformações sociais e familiares importantes na sua vida.
5 In documento público de divulgação do referido workshop.
6 In entrevista que Tiago Rodrigues me concedeu, em fevereiro de 2011.
7 Os workshops foram orientados por Jacinto Lucas Pires (escritor), João Lucas (compositor) e Clara Andermatt (coreógrafa).
8 Não estava definido à partida se todos os intérpretes que frequentaram os workshops iriam ou não participar no espetáculo, mas Tiago Rodrigues acabou por decidir que ninguém ficaria de fora. Saíram, a meio do projeto, dois elementos, por decisão própria.
9 Assim, entre dezembro de 2010 e maio de 2011, o espetáculo Bela Adormecida foi apresentado em onze teatros: Teatro Municipal de Bragança, Cine‐Teatro de Estarreja, TEMPO, em Portimão, Centro Cultural Vila Flor, em Guimarães, Teatro Viriato, em Viseu, TECA, no Porto, Teatro Micaelense, em Ponta Delgada, Teatro Virgínia, em Torres Novas, Teatro Municipal da Guarda e Casa da Cultura, em Alfândega da Fé.
10 Estes workshops foram orientados por Vítor Rua (compositor) e, de novo, por Clara Andermatt (coreógrafa), os quais assinariam, respetivamente, a música e a coreografia de Maior.
11 Dois dos intérpretes interromperam temporariamente a atividade, por razões de saúde.
12 A Companhia Nacional de Bailado é única companhia pública de dança em Portugal. Foi fundada em 1977, no contexto de uma democracia recente, durante a vigência do I Governo Constitucional de Portugal.
13 O espetáculo foi apresentado em quatro teatros, para além do CCB, um número bem inferior ao das apresentações do espetáculo anterior, Bela Adormecida, facto que se deverá à crise económica que então se faz sentir em Portugal e à consequente contração orçamental que afeta todas as estruturas de apresentação de espetáculos no país.
14 O Conselho Consultivo é constituído por Daniel Sampaio, psiquiatra, que preside, Eduardo Marçal Grilo, administrador da Fundação Calouste Gulbenkian, e pelos escritores António Mega Ferreira e Jacinto Lucas Pires. Inicialmente, eu própria, a convite de Luísa Taveira, fiz parte do Conselho Consultivo, o qual, contudo, viria a abandonar em janeiro de 2011, quando decidi que queria trabalhar sobre a atividade da companhia, o que seria deontologicamente incompatível com as funções que ocupava na sua estrutura.
15 Cargo que ocupa desde outubro de 2010.
16 In dossiê de apresentação da companhia, documento divulgado em 2010.
17 Atualmente diretor do Teatro Nacional D. Maria II, função que desempenha desde janeiro de 2015.
18 In entrevista que Tiago Rodrigues me concedeu, em fevereiro de 2011.
19 In texto de apresentação do espetáculo, no programa de estreia do mesmo.
20 In texto de apresentação do espetáculo, no programa de estreia do mesmo.
21 In entrevista que Clara Andermatt me concedeu, em abril de 2015.
22 A análise mais exaustiva destes trabalhos é feita por Sally Banes (1993 /1983), uma historiadora e teórica que se tem dedicado ao estudo deste período da dança norte‐americana.
23 A expressão task oriented movements foi usada por Anna Halprin para descrever um tipo particular de movimentos, os implicados em ações, tarefas práticas com ou sem objetos. Um exemplo destes movimentos, dado pela própria Halprin, é o seguinte: “build a scaffold and when you’ve buill it, go up to the top” (1995, p. 8).
24 São exemplos desta articulação, as peças coletivas Ritual and Celebration (1977), Male and Female Ritual (1978), Search for Living Myths and Rituals through Dance and the Environment (1980). Sobre o percurso, significado e impacto artístico e social o trabalho de Halprin, ver Caux, 2006; Halprin, 1995; Ross, 2007.
25 Os desenvolvimentos da dança de Halprin aproximam‐se de uma visão terapêutica da dança, no sentido em que se procura através da sua prática prevenir ou atenuar o impacto negativo da redução das funções do corpo ao longo dos anos (Lerman, 1984), uma vertente da dança sobre a qual, contudo, não nos estenderemos neste texto.
26 Seria ainda importante perceber que influência poderão ter exercido intérpretes provenientes de contextos culturais enformados por diferentes formas de perceber a idade e o envelhecimento na valorização da longevidade dos performers no contexto da dança teatral ocidental. O bailarino japonês Kazuo Ohno, por exemplo, um dos fundadores do Butoh, um género de movimento que muito contribuiu para o alargamento das formas de representar o corpo na dança no Ocidente, dançou em palco até aos seus 100 anos. E já em 1984 Halprin afirmava que um dos seus “most inspirational and delightful friends is don José, a 107‐year‐old Huichol Indian medicine man, who leads large groups of people in the sacred deer dance of his tribe” (p. vii).
27 O desenho de luzes e a sonoplastia de Maior são, respetivamente, de Wilma Moutinho e Vítor Rua.
28 In carta de motivações escrita por Celeste Melo, aquando da sua candidatura ao workshop o nosso tempo é amanhã.
29 Humberto Delgado foi um forte opositor ao Estado Novo, tendo‐se candidatado às eleições presidenciais de 1958. Apesar de a campanha ter sido muito viva e promissora, por todo o país, não foi eleito. A oposição acusou o regime de fraude na contagem dos votos. Foi perseguido e assassinado em 1965 pela Polícia Internacional e de Defesa do Estado (PIDE). A sua filha, Iva Delgado, intérprete da Companhia Maior, é autora de vários documentos sobre a vida do homem que ficou conhecido por o General sem Medo.
30 In carta de motivações escrita por Iva Delgado, aquando da sua candidatura ao workshop o nosso tempo é amanhã.
31 In entrevista que Iva Delgado me concedeu, em setembro de 2011.
32 Gerontologistas têm discutido os problemas sobre a definição das pessoas mais velhas, afirmando que a definição de pessoas acima de uma determinada idade, como acima dos 60, por exemplo, é demasiado ampla, e que é necessário encontrar categorias mais restritas, o que, por sua vez, pode resultar num exercício redutor (Bytheway, 2005). No âmbito deste texto, usamos a expressão “acima dos 60 anos de idade” como uma categoria a que os próprios fundadores da Companhia Maior recorrem como um fator de discriminação positiva, reconhecendo que idade é uma das dimensões da organização social (Maddox, Moore, Lowe & Neugarten, 1996). Como explicou Tiago Rodrigues, quando o interroguei sobre o critério que presidiu à decisão de criar uma companhia para pessoas acima dos 60 anos de idade: “Lembro‐me de eu e a Luísa falarmos — naquela fase em que eu me sentia apenas um interlocutor informal e conversávamos e trocávamos e‐mails — que a idade da reforma, essa fasquia administrativa, permitia uma mistura de ativos e não ativos, criando uma barreira exclusivista que nós achávamos ser uma boa provocação e um apelo interessante. Se eu vir que o workshop é para quem têm mais de 60, sente que está entre pares e sente estímulo em ir lá. Apesar de haver atores com mais 60 anos a trabalhar, há, contudo, menos trabalho para estas pessoas; há muitos que pararam. Agora, em Portugal, ainda há muitos atores mais velhos a trabalhar que têm a sua companhia há anos, e que envelhecem juntos, mas isto já não vai acontecer no futuro, isso já não vai acontecer com a minha geração, porque o modelo de companhia implodiu. Nós, ao envelhecermos, vamos ter mais dificuldade em continuarmos a ser os freelancers que somos agora.” (In entrevista que Tiago Rodrigues me concedeu, em fevereiro de 2011.)
33 In entrevista que Júlia Guerra me concedeu, em setembro de 2011.
34 In entrevista que Carlos Nery me concedeu, em novembro de 2011.
35 In entrevista que António Pedrosa me concedeu, em novembro de 2011.
36 In entrevista que Celeste Melo me concedeu, em novembro de 2011.
37 Num outro contexto, o da prática das danças sociais, Cooper &Thomas realçam que um dos mais importantes significados que a dança pode ter, para as pessoas mais velhas, em particular, reside precisamente no facto de que “dance provides a sense of continuity when it is most needed […]” (2002, p. 706).
38 In entrevista Carlos Nery me concedeu, em novembro de 2011.
39 A Alameda Afonso Henriques e o Jardim da Estrela são espaço públicos em Lisboa onde se reúnem muitos idosos, sobretudo homens.
40 In entrevista que Vítor Lopes me concedeu, em novembro de 2011.
41 In entrevista que Paula Bárcia me concedeu, em janeiro de 2015.
42 In entrevista que Kimberly Ribeiro me concedeu, em outubro de 2011.
43 In entrevista que Michel me concedeu, em novembro de 2011.
44 In entrevista que Elisa Worm me concedeu, em dezembro de 2014.
45 In entrevista que Paula Bárcia me concedeu, em janeiro de 2015.
46 In entrevista que Júlia Guerra me concedeu, em setembro de 2011.
47 In entrevista que Iva Delgado me concedeu, em dezembro de 2011.
48 In entrevista que Iva Delgado me concedeu, em setembro de 2011.
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