Tiago Rodrigues
Bela Adormecida
2010
Bela Adormecida é o primeiro espetáculo da Companhia Maior, resultado de residência no Centro Cultural de Belém. Convidado a dirigir a primeira criação da companhia, Tiago Rodrigues escreveu e encenou uma versão contemporânea de Bela Adormecida, onde fragmentos de memórias dos próprios intérpretes se misturam com uma reflexão sobre a memória, o envelhecimento e o “despertar” para novos mundos.
O Combustível do Presente
“O príncipe demora a vida inteira a encontrar o palácio. Beija a Aurora. Quebra o feitiço. Quando os habitantes do palácio acordam, dão conta que o tempo não parou no momento em que adormeceram. Enquanto dormiam, envelheceram.” Foram mais ou menos estas as palavras que usei sempre que, durante os últimos meses, tentei explicar a alguém que Bela Adormecida era esta.
A ideia de reinventar um “clássico” surgiu das conversas partilhadas com Luísa Taveira, a grande impulsionadora do projeto Companhia Maior. Convidado a dirigir a primeira criação desta companhia, sempre assumi que este espetáculo também teria que servir para inventar e afirmar uma identidade artística. Um grupo de intérpretes com mais de 60 anos e com experiências em várias áreas, disposto a arriscar confrontar-se com o trabalho de criadores contemporâneos. O “clássico”, inscrito no imaginário coletivo, permitia usar um vocabulário que era transversal em termos geracionais. Tratando-se de um “clássico” do ballet, seria possível a mistura de disciplinas, desde logo a dança e a música, mas também o teatro. Contactei pela primeira vez com este elenco meses antes do início dos ensaios, durante um workshop de dez dias, onde explorámos memórias pessoais na criação de fragmentos e cenas. O despertar de cada um dos artistas para este projeto encontrava a sua versão metafórica na narrativa de Bela Adormecida e o jogo de usar o passado como combustível do presente pareceu-me o ponto de partida para uma adaptação. O passado de que nos alimentamos neste espetáculo é também a tradição artística do “clássico” estreado em São Petersburgo, sem grande sucesso, há 120 anos. Aqui, a música de Tchaikovsky ou a coreografia de Petipa diluem-se nas memórias de personagens e intérpretes.
Poder-se-ia falar de um discurso sobre a tradição artística, mas interessa-me mais a noção de herança. Porque a tradição é estanque e não nos pertence. Mas uma herança, gastamo-la como quisermos. Possuímo-la.
Em Bela Adormecida, os simbolismos são subvertidos, analisados ou tomados à letra. A herança é possuída, tentando sempre uma poética da memória. Uma memória que nos persegue ou nos escapa. Uma memória que nos aprisiona ou nos liberta. Mas, inevitavelmente, a memória que é fonte da energia que ilumina o presente.
Tiago Rodrigues
Ficha Técnica e Artística
Texto e encenação
Tiago Rodrigues
Intérpretes
António Pedrosa, Carlos Nery, Celeste Melo, Cristina Gonçalves, Diana Coelho, Helena Marchand, Isabel Millet, Isabel Simões, Iva Delgado, Júlia Guerra, Kimberley Ribeiro, Manuela de Sousa Rama, Michel, Vítor Lopes
Assistência de encenação
Cláudia Gaiolas
Desenho de luz e cenário
Thomas Walgrave
Figurinos
Patrícia Raposo
Filmagem
Bruno Canas
Produção executiva
Magda Bizarro
Mariana Sampaio
Fotografia
Cláudia Varejão
Magda Bizarro
Uma produção
Mundo Perfeito e Companhia Maior
em coprodução com o
Centro Cultural de Belém
Agradecimentos
Cláudia Varejão
Clara Andermatt
Eduardo Sérgio
Jacinto Lucas Pires
João Lucas
Lula Pena
Rita Bagorro
Rui Horta
Apresentações
ESTREIA
28 a 31 de outubro 2010
Centro Cultural de Belém
Lisboa
REPOSIÇÕES
27 de novembro 2010
Teatro Municipal de Bragança
11 de dezembro 2010
Cine-Teatro de Estarreja
21 de janeiro 2011
Centro Cultural Vila Flor
Guimarães
15 de janeiro 2011
TEMPO – Teatro Municipal de Portimão
28 e 29 de janeiro 2011
Teatro Viriato
Viseu
3 a 6 de fevereiro 2011
Teatro Carlos Alberto
Porto
26 de fevereiro 2011
Teatro Micaelense
São Miguel, Açores
26 de março 2011
Teatro Virgínia
Torres Novas
29 de abril 2011
Teatro Municipal da Guarda
21 de maio 2011
Casa da Cultura
Alfandega da Fé
8 de julho 2011
Tróia Design Hotel
Fotografias desta página: © Paulo Martins
O espectáculo como contemporaneidade pela via da memória
Bela Adormecida é o espetáculo e também o gesto fundador de uma nova companhia feita de artistas com mais de 60 anos, vindos de diversos quadrantes da criação artística.
Variação contemporânea sobre o clássico do ballet onde se fundem a criação musical de Tchaikovsky e a coreografia de Marius Petipa, já eles próprios beneficiários de uma longa tradição literária ligada ao tema, destacando-se o conto “La belle au bois dormant”, de Charles Perrault, o espetáculo Bela Adormecida surge como a primeira criação de uma companhia com duas características que a tornam singular. Em primeiro lugar, o seu elenco integrado por intérpretes e criadores das áreas da dança, teatro e música. Em segundo lugar, é uma companhia de artistas com mais de 60 anos.
Um dos grandes desafios deste projeto, que apenas agora tem o seu início com a criação de Bela Adormecida , é o de propor uma outra criação artística contemporânea onde há lugar para a memória, a experiência. Trata-se de uma convicção de que as artes do palco precisam deste espaço onde artistas mais velhos podem mostrar-se como artistas de hoje e não apenas como exemplos da “tradição”.
Neste sentido, Bela Adormecida contém, enquanto fábula e enquanto obra canónica para as artes do palco durante o último século, diversos elementos que nos remetem para esta reflexão acerca da passagem do tempo. Bela Adormecida é um terreno fértil para um espetáculo que pensa o próprio conceito que levou à criação desta companhia. “É possível acordar num tempo que não é o seu e torná-lo seu?”, pergunta-nos esta ficção. Será sequer possível que o presente seja pertença de alguém? E que lugar reserva o mundo para aqueles por quem passou um século de sono, enfeitiçados, e que agora acordam no futuro?
Na nossa Bela Adormecida talvez não haja feitiço e não tenham permanecido jovens aqueles por quem o tempo passou. Talvez tenham estado acordados todo o tempo e apenas sintam que renasceram, pelo simples exercício de evocar a memória no presente.
Bela Adormecida levanta também a questão da coabitação de diversas disciplinas artísticas, um dos pilares desta companhia. Se a intemporalidade deste clássico nos oferece espaço para a abordagem ao tema do tempo, tanto o físico como o histórico, então a fusão de diferentes artes oferece-nos o desafio técnico que é essencial para que este grupo de artistas encontre uma linguagem comum e contemporânea.
Que portas podem estes artistas abrir hoje, quando confrontados com as questões de como dançar, como tocar, como dizer a Bela Adormecida? Sobretudo artistas que, pela sua idade e percurso, testemunharam e tomaram parte da evolução das linguagens cénicas modernas. Sobretudo artistas que terão já visto diversas versões desta obra.
Com este espetáculo, pretendo usar uma ficção universal para refletir sobre a condição dos artistas que estão em palco e sobre a condição humana de uma forma mais geral. Mas pretendo também que Bela Adormecida seja o veículo para as vozes de hoje desses mesmos artistas. Vozes talvez mais roucas do que é habitual. Vozes certamente mais sábias. Mas vozes capazes de arriscar, porque são vozes do presente.
Luísa Taveira
“A alma do projecto desta companhia, cuja ideia data de 2007, é o aproveitamento da experiência acumulada de artistas provenientes das diversas vertentes das artes performativas. Trata-se de valorizar a maturidade, os saberes forjados e aperfeiçoados ao longo do tempo e o intenso desejo de comunicar desta fase da vida, em que a reflexão e a ponderação já tiveram mais espaço para vaguear, mais tempo para duvidar, equacionar, concluir…
O tempo, a memória e a experiência são elementos-chave neste projecto de artistas que, em período de balanços e avaliações, se encontram também na fase mais propícia ao estabelecimento de diálogos e entendimentos: entre diversas maneiras de fazer, entre diferentes ofícios, mas também entre tempos e gerações diferentes. São artistas intervenientes a quem a vida não roubou a insatisfação e a curiosidade e, por outro lado, cuja idade já nada tem a ver com oportunismos ou efeitos fáceis.
A reacção do Centro Cultural de Belém a esta proposta foi imediata e de grande entusiasmo, bem como a de diversos agentes culturais que foram sendo contactados. À medida que fomos auscultando estas opiniões, foi crescendo em nós alguma ansiedade perante as expectativas do projecto. Conhecíamos bem, não só as responsabilidades artísticas, como as sociais e éticas que nele estavam implícitas, mas o carácter inédito desta iniciativa exigia de nós o esforço e, mais do que isso, o engenho de a transformar numa experiência tão exemplar quanto possível.
Foram dois anos de maturação e de trabalho de campo, onde as práticas de uma Company of Elders, em Inglaterra, de um Nederlands Dance Theater 2, na Holanda e a do The Bealtaine Festival, na Irlanda serviram como bons pontos de partida. A adaptação a uma realidade artística e social portuguesa protagonizou a fase seguinte. Os pareceres de amigos e profissionais foram de grande importância, sobretudo os de Tiago Rodrigues que esteve presente quase desde o início e cujo envolvimento foi fundamental.
Pensamos neste projecto como extravasando qualquer personalidade ou instituição. É no CCB que ele nasce, e é também a casa que o pode acolher, mas julgamos que só será MAIOR se verdadeiramente nos pertencer a todos. A presença de um conselho consultivo, tão habitual nas formações anglo-saxónicas e constituído por personalidades da sociedade civil, é uma das respostas a esta intenção.
Empenharmo-nos nesta causa de dar voz à criatividade de uma idade maior não é só um dever. É sobretudo uma janela aberta para um potencial artístico que, numa era onde se preza a jovialidade da imagem e da atitude, pode ser de uma frescura arrebatadora, porque é pleno de VIDA na verdadeira acepção da palavra.”
Luisa Taveira